quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Uma vida submersa

Não há nós ele lhe disse de maneira enfática e penosamente tranqüila. Não somos nós dois. Não há não há amor maior no mundo. Tudo isso é uma ilusão imposta por um sonho construído às margens do fim – ele gostava de frases de efeito. O ano era 1971.
O ano era 1971 e pessoas sumiam enquanto aforismos eram recitados na tevê. Educação moral e cívica era a disciplina da vez: “Ame seu país. Faça por ele o que ele faz por você.” E pessoas sumiam e amores terminavam.
No ano de 1971, Alfredo Mariano conheceu Julia Couto. Em algum lugar de março de 1971 o poeta Ferreira Gullar escrevia “Poema” que poderia refletir coincidentemente com, agora, a história única de Alfredo e Julia, mas eles não sabem o sentido dos versos do poeta Gullar. Porém, mesmo assim, Alfredo os dedica a Julia como se fossem seus. Mas não são. Daqui a poucos anos Gullar será exilado na velha Buenos Aires, tão perto, mas tão longe de nós. Mas o ano ainda é 1971 e não sabemos que fim levará o poeta Gullar.
Os diretórios são clandestinos, como os são os porões da tortura. Uma canção toca ao longe, mas o amor não está no ar. Porém ele se esvai, porém, ele soa, soa como a garrafa morena de cerveja gelada num boteco próximo à Igreja da Candelária.
Em voz baixa e quente: desceremos a Primeiro de Março e com as bombas incendiárias atacaremos o 1º Distrito Naval. Eles precisam entender quem nós somos e o que queremos: liberdade!. Quantas ilusões valem um amor jurado como eterno?
O Manifesto Comunista passa de mão em mão, como o pão que antecede à Santa Ceia, parece um ritual purificador. Não temos religião. Não temos um deus – Salve Marx. Salve Fidel. Estamos a um passo da Revolução: liberdade!.
Uma voz suave quase some dentro da grande igreja: estou grávida. Teremos um filho: um filho da Revolução que está por vir! Seremos nós dois em um só ser!. A mesma voz baixa e quente se exalta e esfria: Não somos nós dois. Não há não há amor maior no mundo. Tudo isso é uma ilusão imposta por um sonho construído às margens do fim. O ano era 1971.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Testamento

Deixo-te o derradeiro fim da minha alma
Daqui parto para onde nunca imaginaremos estar
Não sinto remorso, apenas um forte cansaço me enfraquece as pernas e os braços
Meu corpo não quer responder ao chamado físico das minhas expectativas
A moda acabou,
O talento se foi
A tinta é pouca para tanto papel.
Escolhi o caminho errado para viver.
Só lhe deixo dois poemas verdadeiros
Pois o resto foi tempo de momento.

26 de janeiro de 2009
Bruno Alvaro

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Caminhos


Fico aqui pensando quando nós dois cruzaremos a mesma rua. Quando meu braço se esbarrará no teu? São mistérios irreveláveis que nossa imaginação não consegue nem sequer deduzir. Eu estou agora nesse lugar. Por onde andará você?
Termino meu café na esquina, pago com moedas. O jornal disse que vai chover – não tenho guarda-chuvas, porém, guardo em mim uma vontade enorme de te conhecer um dia. Eu espero tanto que seja breve esse dia.
Ainda ontem estive perto do que daqui alguns anos será o apartamento dos teus pais que eu irei visitar num domingo. Eu ainda caminho. Tomo meu ônibus e aprendo francês. Tenho um vazio que parece que ninguém pode preencher, pois se estou acompanhado me sinto sozinho.
Não sei quem é você ou o trajeto que faz da casa para o trabalho, do trabalho para faculdade, não sei se de carro ou a pé. Se estiver sozinha ou com alguém, já nem me importa, no tempo, em algum momento, nossos braços hão de se esbarrar.
Estou ainda na poesia concreta, faço imagens com meus versos. Cuspo poesia como quem vai ao banheiro. Sorrio fundo. Trago cigarros. Ando de trem. Tomo uísque com gelo. Coleciono porres em bares. Freqüento festas com novos amigos e me afasto de alguém. Ontem no rádio ouvi Zeca Baleiro, porém, confesso, prefiro Jair Oliveira. Quem vai saber que um dia os dois irão por nós se unir?
Podemos, talvez, nos encontrar, num corredor, esperando o elevador ou num show gratuito em algum lugar. Sinto que ocupamos os mesmos espaços, mas não sei quem é você. Não tenho uma imagem, um cheiro, tampouco um sorriso para que eu possa realmente saber. Confesso que não desafiarei meu corpo, minha alma por um vão prazer. Até comento com os amigos que estou esperando alguém como você.
Se me perguntarem agora, nessa esquina, no ponto de ônibus: quem é essa menina? Responderei, talvez, um pouco acanhado, simplesmente: é ela. Alguém que não sei quem é, mas hei de saber.
Migrei, então, para versos mais simples. Carregados de uma certa tristeza. Quando eu te conhecer já estarei, praticamente, sozinho e, por sorte, você saberá me compreender, terá paciência e até bom humor para não chorar a resistência que, quase, forçarei você a ter.
Viro a próxima rua, me sento quase em frente de onde está você, eu não sei, você não sabe. Esse será o momento que antecede ao suspiro e ao “para sempre”.
Não me importo com falsos clichês, continuo a fumar, mas percebo que posso morrer sem te conhecer. Até diminuo na bebida, esperando que meu fígado entenda certa abstinência por um amor, que tenho certeza, não será em vão.
Ontem me debrucei próximo aonde um dia vamos nos beijar, um certo ar de cansaço, confesso, havia no meu suspirar. Não ando apaixonado, talvez, porque eu espere você logo chegar. Observo uma exposição que daqui algumas semanas veremos juntos, esperando cruzar nossas mãos. Folheio livros na Arlequim com você longe de mim. Compro uma pipoca no Paço, a mesma que nossa fome um dia matará. Um bilhete de cinema, um filme que está para estrear... Tudo o que ainda não vejo ou vi me preparar para te esperar.
Caminhos que a gente não entende. Língua que a gente aprende e que um dia nem vai usar. Tristezas que a gente passa, só para sorrir quando se encontrar. Pois meu dia sempre acaba na conta última de imaginar quando meus lábios tocaram os teus meu mundo voltou a rodar. Pois o que é o passado o presente futuro? Se agora sabemos no que isso tudo foi dar?



Publicado também em: http://recantodasletras.uol.com.br/autores/brunoalvaro

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

As palavras são necessárias?

Há muito, intelectuais, pseudointelectuais, metidos a besta, ou mesmo, entusiastas vêm tratando a questão da linguagem, ou das linguagens, diriam outros tantos. Isso não chega a ser algo surpreendente, nem tanto novo para muitos dos que me ouvirão hoje. A própria História, há tempos, se rendeu ao assunto. Exemplos? Muitos. Fiquemos sem eles.
Em 1989, Francisco Buarque de Hollanda lançou o belíssimo disco “Chico Buarque”. No lado B do trabalho a conhecida “O futebol”, a linda “Valsa brasileira” (parceria com o gênio Edu Lobo), etc. Entretanto, uma, entre as dez canções do disco, mais me chama atenção e, para os mais conhecedores, destaco que não é “Morro Dois Irmãos”, mas, sim, “Uma palavra”. E será partindo dela que soltarei minha voz hoje:

Uma palavra
Chico Buarque/1989

Palavra prima
Uma palavra só, a crua palavra
Que quer dizer
Tudo
Anterior ao entendimento, palavra
Palavra viva
Palavra com temperatura, palavra
Que se produz
Muda
Feita de luz mais que de vento, palavra
Palavra dócil
Palavra d'água pra qualquer moldura
Que se acomoda em balde, em verso, em mágoa
Qualquer feição de se manter palavra
Palavra minha
Matéria, minha criatura, palavra
Que me conduz
Mudo
E que me escreve desatento, palavra
Talvez, à noite
Quase-palavra que um de nós murmura
Que ela mistura as letras que eu invento
Outras pronúncias do prazer, palavra
Palavra boa
Não de fazer literatura, palavra
Mas de habitar
Fundo
O coração do pensamento, palavra
1989 © - Marola Edições Musicais Ltda. Todos os direitos reservadosDireitos de Execução Pública controlados pelo ECAD (AMAR) Internacional Copyright Secured

Eu poderia aqui perder um certo tempo analisando a letra da música, mas não posso, não quero. Ao invés disso, pretendo apenas me fazer valer dos versos da última estrofe da canção: Palavra boa/ Não de fazer literatura, palavra/ Mas de habitar/ Fundo/ O coração do pensamento, palavra. Talvez, eu até seja criticado pela desnecessária citação de toda a letra, mas... acho que a poesia de Chico Buarque nunca é demais. Pois bem, alonguei-me muito (como sempre), mas, se iniciamos, vamos até o fim, correndo, mais uma vez, o risco de não chegarmos a lugar nenhum.
Hoje reiniciei meu trabalho, árduo, por sinal, como professor de História. Escola nova, novas turmas, blá, blá, blá. Ao chegar em casa encontro um pequeno garoto na minha sala, seus 7, 8 anos. Estava sentando de frente à mesinha de centro brincando com dois carrinhos velhos que tenho e uma réplica de chumbo de um cavaleiro cruzado. Já o tinha visto pela manhã quando saí para trabalhar, é filho do pedreiro que está efetuando a reforma de uma casa que temos, bem próxima da que moramos.
Como sempre, meu contato com todo e qualquer tipo de criança é um tanto penoso (não sei o motivo). Penoso, no sentido da aproximação, não sei. Não é nem porque não gosto dos futuros adultos, é uma coisa meio sobrenatural mesmo.
O vi brincando e falei: e aí, rapaz, tudo beleza? Ele não respondeu e continuou com o olhar fixo nos pouquíssimos “brinquedos” que me sobraram. Fui até a cozinha e minha mãe estava aprontando o almoço e comentou: viu nosso amigo na sala? E eu: pois é, vi sim. Ela: ele tem problema auditivo, é surdo. Tem que falar bem perto dele e devagar para ler teus lábios.
Fui almoçar. Ele continuou brincando, puxei assunto. Ele riu. Apontou uma foto minha quando criança e deu de apontar todas as fotos espalhadas pela minha sala. Iniciamos nossa conversa sem sons, apenas gestos, gestos vagos, mas, para nós: profundos. Creio que ele dizia: você quando criança não tinha barba grande...
A ele mostrei minhas fotos no período de caserna na Marinha e ele ria, parecia rir de tudo. Parece ser feliz. Como bom medievalista, melhor, como bom amante de História Medieval, eu não poderia deixar de reparar que ele gostou muito do cavaleiro cruzado de chumbo. Então peguei um livro com várias fotografias de réplicas de armaduras, espadas, catapultas, toda a evolução bélica cavaleiresca...
Para tudo apontava, exclamava, colocava pontos de interrogação com o olhar, reticências com as mãos, mas nunca um ponto final. Curioso, sobre tudo perguntava com o sorriso. Viu, várias e várias vezes minhas fotos e com um aceno dizia: “militar”. Quando olhou as fotos da minha formatura na universidade, percebi que ele não entendeu e eu, sem palavras, melhor com palavras gestuais disse: “professor...”. Balançou a cabeça que sim.
No fim da tarde, talvez agora, me retirei para o quarto, precisava estudar, ele ficou com seus sons, brincando de banho de borracha com minha mãe e minha prima. Daqui, só posso imaginar os sons das suas palavras: Palavra boa/ Não de fazer literatura, palavra/ Mas de habitar/ Fundo/ O coração do pensamento, palavra...
Definitivamente, não. As palavras não são necessárias.