Falo no calor do momento, apesar do vento fresco que entra
pela janela do escritório de casa e o cinza da chuva fina que deságua pela
capital sergipana. Num dos cômodos da casa, uma jovem senhora passa as roupas
da semana, uma trabalhadora, tem filhos, marido, ganha seu sustento pelo seu
trabalho. Acordei às seis da manhã, ela também deve ter acordado às seis da
manhã. Eu acordei às seis da manhã para fazer ginástica funcional com um grupo
de pessoas no parque municipal. Arquitetos, historiadores, Assistentes Sociais.
A jovem senhora acordou às seis para colocar o café do esposo na mesa, arrumar
suas crianças e depois pegar um ônibus cheio e vir para minha casa. Imagino
isso. Deve ser isso.
A casa vai ficando em silêncio, só ouço minha voz transposta
no tom que emana o toque dos meus dedos no teclado. Minha voz é essa escrita.
Minha voz se converte em escrita.
Minha companheira, que também acordou às seis para ir fazer
comigo e os outros a tal ginástica funcional, adianta seus projetos de
arquitetura. Eu continuo a dar voz a mim mesmo. Digressões. Sou um ser humano
naturalmente só.
Mas escrevo no calor do momento e enquanto eu acordava, um
jovem, mais jovem do que eu, era atropelado numa avenida de grande movimento. Era atropelado na mesma via que atravesso com a bicicleta em mãos, empurrando para tentar
acessar a ciclovia. O rapaz era gari. Eu sou professor universitário. Mas, nós
dois, ele agora e, quem sabe, eu um dia, somos estatísticas.
Escrevo no calor da ira. Da raiva que não se contenta em ler
na matéria de jornal on-line, nos dois sites de mais circulação na cidade,
apenas uma breve nota do ocorrido, uma breve nota e, mesmo assim, por ser a
avenida de grande circulação – apesar do adendo simplório que tenta justificar:
naquele momento é pouco o fluxo de carros.
Há uma passarela uns cem metros à frente. Mas, pergunto eu:
por que não duas passarelas? As pessoas que moram naquele entorno também se
perguntam. Os ciclistas se questionam: como sair dos bairros Luzia, do Conjunto
Médici, do Inácio Barbosa, do Distrito Industrial e acessar a ciclovia que
segue entra as faixas da famosa Tancredo Neves?
Aliás, eu me questiono: como os ciclistas que moram no
entorno da Avenida Adélia Franco, onde deságuam os moradores dos bairros
citados, acessarão com segurança a ciclofaixa da Tancredo?
Minha solução foi curiosa: Ando uns metros a mais e
atravesso com a bicicleta no sinal quase em frente ao Macro. Corto a rua das
Autos-escolas – que ironia – passo por uma área que me lembra a região dos estivadores na Praça Mauá e, um tanto quanto esperançoso, fico aguardando o
sinal fechar. Mas, isso não significa que o sinal fechado – apesar de ser um
cruzamento para quem está saindo (de carro) do Jabotiana – obrigará os motoristas a pararem. Pego a ciclovia, um tanto quanto ainda esperançoso, e acho que
conseguirei chegar vivo e com a bicicleta na Universidade Federal de Sergipe.
Um tanto feliz, observo o trânsito parado e penso: que bom que estou sobre as
duas rodas e faço força no pedal. Mas, de repente, e tudo na vida é tão de
repente, SVU’s, Vans de empresas rumo ao interior e motos de todos os tipos,
passam por cima da ciclovia, rodas largas e grandes – no caso dos carros – jogam-se
sobre a tinta vermelha que demarca o lugar do ciclista. A mesma cor vermelha do
sangue que molhou hoje pela manhã o asfalto da Tancredo Neves. O mesmo rubro
vivo do sangue de mais um trabalhador que se converteu, antes de ser pó, a mais
um número de estatística. Ele tinha 28 anos, se chamava Ítalo Tavares Oliveira
e deu seu último suspiro aos pés do viaduto Manoel Celestino Chagas antes de se
converter em mais um número de estatística. Meus dedos diminuem o ritmo.
Representam a voz que embarga: o calor do momento. Paz.
As matérias estão em:
- Gari é atropelado e morto na avenida Tancredo Neves
- Jovem morre atropelado ao tentar atravessar a Av. Tancredo Neves
Nenhum comentário:
Postar um comentário