quinta-feira, 13 de novembro de 2014

O suor dos outros entre meus dedos

Mesquita - Rio de Janeiro

            Talvez você não saiba, mas conversamos agora. Você ouve neste exato momento minha voz entre as cidades de Laranjeiras e Nossa Senhora do Socorro. Você ouve minha voz enquanto o surrado disco Fa-tal da Gal toca no dial. E minha voz é dissonante. Talvez, você não saiba. Mas, eu sou você. E você há de ser contraditório.
            Você que me ouve agora é o eu de algumas semanas atrás. É o eu com vontade de conversar e que vem falando baixinho junto com cada nota do violão setentista da Gal. Tão nostálgico quanto o nós e o eu de algumas semanas atrás.
            Quando desci e vi o sol gigante ao lado esquerdo da janela, percebi que estava fadado a sempre regressar como estrangeiro na terra em que nasci. Um estrangeirismo que já me perseguia anos antes quando cruzava a Avenida Brasil ou os trilhos que cortam a Baixada Fluminense rumo à Central. Um estrangeirismo blasé que me deslocava dentro das salas ifcianas ou que me fazia olhar a cidade abaixo, suas casas com telhas marrons e as ruas de partes de paralelepípedos e voar com o pensamento para algum lugar longe dali.
            Ainda nostálgico e meio perdido, fui pedalando e cortando as ruas, vendo a cidade acordando, o cheiro do café coando ainda em maquinas de alumínio antigas que não foram tragadas pelos expressos nescafé. O anúncio dos Supermercados Guanabara no rádio de pilha do primeiro camelô a chegar e cada qual no seu lugar. As putas se recolhendo, o Capanema em reforma, os mendigos pelo chão e ciclovias que até então eu não conhecia. Officeboys já se acotovelavam nos balcões das lanchonetes e na Uruguaiana eu já me habituava ao hábito que eu tinha e que era meu ou que não devia ser. Mas, num estalo tamanho, olhando meus pés, abrindo minha carteira, vendo meu reflexo no sumidouro do espelho surrado do sujo banheiro do bar, constatei: não sou mais eu aqui.
            Mesmo o velho joelho, aquele tradicional enroladinho com queijo e presunto, já não possuía o gosto normal dos seis anos atrás: havia agora um quê de exótico. Não era mais eu ali. Eu parecia não comungar da seita da atendente que com intimidade com o cliente do lado, vendedor das Casas Bahia, brincava: “Moro no Jacarezinho, isso você sabe, mas não sabe onde é minha casa”. E eu ali, excluído de uma realidade que conheci, mas que não era mais a minha. Eu: contradição.
            Um sentimento estranho de olhares reprovativos. O trem não é mais seu. O ônibus apertado também não. Mesmo seus olhos fundos e cansados, já não são como os nossos. O futebol na várzea não é mais teu, do nosso copo de requeijão com cerveja gelada e samba na esquina não beberás. Você não é daqui.
            E mesmo agora, nesse carro comprado zero em suaves quarenta e oito prestações e que me prendem no que não era preciso prender, testemunham que realmente não é mais isso aquilo que era, enquanto ouço minha própria voz no presente tentando me explicar o passado. Apenas penso que o suor dos outros escorrem entre meus dedos, nas minhas mãos agora finas, sem calos ou ásperas. Pois, quanto mais calejada e mais áspera a mão de um Ser, mas testemunha-se a aspereza da vida e o quanto aspirar o pó da rua ou o cinza do cimento das capitais torna o pulmão da gente fraco, mas a pele forte e dura.
            Talvez, você não ouça aí do passado ou não entenda seu próprio gesto com as mãos. Ou mesmo o chope gelado em frente a estação apenas certifique, não sua falha, mas toda sua profunda contradição. Vê? Agora você me ouve.

O Ventríloquo voltou...

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