A memória sempre me dói. Memória e dor, no meu caso, mesmo
que seja em terceira pessoa, sempre doerá. Enfim, acho o passado uma merda.
Não sei por que me lembrei de Camila. Mas, antes de Camila,
houve a Sabrina e após elas duas, Tereza e depois de tantas outras: vocês.
Chego a ouvir o barulho da água correndo e se chocando nas
pedras do Rio Dona Eugênia, hoje uma vala negra que sangra assoreada cortando
os bairros da Coreia e do Centro, talvez, se eu não estiver errado, corte ainda
o Cosmorama até, quem sabe, ser mais um fio escuro, sujo e lodoso a desaguar na
Guanabara... Chego a ouvir o barulho das músicas que cantávamos.
Era uma escola de bairro, numa casa grande e com salas com
poucas divisórias, uniformes quadriculados e com nossos nomes. Ali passávamos
nossas manhãs e os lanches que trazíamos eram divididos entre todos da classe
numa mesa retangular de madeira. Eu corria e me sentava na frente de Sabrina,
um dourado na pele morena dos nossos cinco anos, cabelos negros e longos,
pesados e com leves cachos nas pontas. Seu nariz perfeito e lábios levemente
carnudos. Sabrina um dia pálida e sem o brilho de sempre vomitou por toda
mesa restos de macarronada e salsicha, bem na minha frente. Dancei quadrilha
com ela naquele ano e nunca mais nos vimos.
Mas foi Camila, tão morena quanto, tão cabelos negros quanto,
que me atiçou ao amor. Duas bolas profundamente negras entre o nariz fino que
me olhavam com desdém, eu magricelas e desengonçado, Segunda Série Primária,
meias brancas, calça tergal vinho e recusado pela Dona Leonor por ser lerdo
demais para estudar ali na tradicional escola mesquitense de famílias que, por
sorte, seriam comerciantes em algum bairro daquele Primeiro Distrito de Nova
Iguaçu. Bons tempos de sinceridade.
Foi Camila que com seus cabelos pouco acima dos ombros, moradora
da Chatuba e que ia de ônibus para a escola, que me atiçou ao amor e aos lábios
femininos e aos olhos femininos mais do que às bundas e às coxas. Os lábios me
beijariam – coisa que Camila nunca o fez – e os olhos me veriam... ou não.
Um dia apanhei na escola, um dia comum de escola. Camila
teve dó dos meus lábios sangrando, meu olhar de peixe morto e o silêncio das
palavras. Pobre de mim, fechei meus olhinhos miúdos e nem beijo, nem carícia.
Apenas me levantou do chão. Morar na Chatuba no fim dos anos 80 requeria força
e conduta, braveza frente ao mundo cão. Coisa da qual meus pais me protegiam
constantemente entre os muros do grande quintal da casa verde de pés de cajá,
jaca, abacate, abil, pitomba e mangas coração de boi. O morro me era uma incógnita
esclarecida apenas nos dias de domingo, quando pelas mãos meu pai me levava à
feira, aos campos de futebol do Parque Central, de Jacutinga e na
Chatuba. A miséria humana e a tristeza infantil – na minha opinião, a mais dura
tristeza que possa existir: a de uma criança – eu conheci num hospital infantil
que minha mãe dava plantão, onde atendia crianças de um orfanato localizado na
Praça Santos Dumont, em Nova Iguaçu. Crianças queimadas por óleo quente, com
olhar fundo e que sorriam quando minha mãe entrava. Meus cabelos penteados para
o lado, a pele viva e corada contrastando com a dureza da realidade. Como
animais ferozes, em finais de semana, aqueles meninos e meninas eram liberados
para zanzarem pela Praça que ficava – não vejo maldade maior no mundo – ao lado
de um Parque de Diversões, acredito que o mais antigo da região. Não houve,
ainda hoje, coisa mais impactante para mim, como ser humano, do que meu contato com
aqueles órfãos. Hoje percebo o quanto aquilo moldou meu caráter e o sentimento de humanismo
que meus pais tinham ao me instruírem brincar com aquelas crianças me deu um desapego curioso às coisas materiais. Sou filho
único. Tive vários irmãos e irmãs.
Camila me ignorou até a Quarta Série Primária – as mulheres
me ignorariam até o curso universitário. Quando num dia de ousadia – eis o
passado – roubei do álbum de família uma foto minha feita por fotógrafo profissional,
fotógrafa, na verdade, contratada pela minha mãe, no qual, burguês de família
em ascensão, eu posava com uma das mãos no queixo e exibia um sorriso branco e
cabelos negros finos e ondulados. Olhos de um profundo cor de terra esboçando a
alegria de uma criança que não previa os males da recessão e de um governo
Collor que pausaria a economia da casa.
Entreguei a foto meio trêmulo, com umas letras redondas,
simplesmente: “Para Camila, Bruno Alvaro”. Havia uma imponência, eu sei, em ter
um nome de sobrenome. E se não havia grandiosidade nisso, pelo menos, era
diferente dos Silva, Maia, Cardoso, Matias, etc., tão comuns na nossa sala de aula.
Ela sorriu com a sagacidade de quem anos depois frequentaria
os bailes funk do Mesquita e do Tênis Clube, protegendo-se do que ainda hoje
protegem-se as mulheres: nós homens.
Olhou a foto com atenção e disse de forma pausada e com um
profundo afeto: “Quando eu tiver um filho quero que se pareça com você...”.
Fiquei puto. Evidentemente, fiquei puto. Mas, hoje, agora, falo alto, com
orgulho, que elogio maior não receberia até deixar de ser ignorado pelo sexo
feminino, na universidade. Quanto a deixar de ser ignorado na universidade há suas controvérsias.
Camila me voltou à mente e aos olhos quando meu pai num empreendedorismo
dos anos 2000 abriu uma minúscula loja de tintas na Chatuba e eu, às 8:00 da
manhã, seguia para ajudá-lo no mesmo e velho Nova Iguaçu X Fábrica de Pólvora
da São Francisco que Camila pegava para ir estudar no início dos anos 90. Dormi
e passei do ponto – isso aconteceria mais vezes na minha vida, passar do ponto –
e desci numa curva medonha, já no trecho final da rua. Ironia da memória, mais
uma vez, ela, a memória, me doeria e eu encontraria Camila, cabelos ainda
negros, mas com algumas mexas blondeadas, três furos nas orelhas, meio magra,
meio cheia, olhos fundos, não sei, mas ainda profundamente escuros, Camila
ainda era linda para mim em todo o exotismo da simetria entre seus lábios e os
seus olhos. Me percebendo meio perdido e fodido na Chatuba com um saco de pão e
um pedaço de queijo minas frescal, ela sorriu e apenas disse: “Ainda tenho a sua
foto...”. Fiquei puto, de novo. Mas hoje, falo alto, com orgulho, foi um baita
elogio.
Ficção ou realidade? Não sei, sempre me dói a memória e o
passado, seja o meu ou o dos outros. Talvez, por isso mesmo, minha memória
sempre falhe. Vamos à Tereza.
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