domingo, 25 de janeiro de 2015

L’art de conjuguer. Dictionnaire des huit mille verbes usuels. Je suis Yuri? Tu es Yuri? Il est Yuri? Je serais Yuri? J’aurais été Yuri? Que j’eusse été Yuri!

Gravura que o Yuri desenhou
sentado na cama de meus pais em Mesquita após um dia de carnaval
no Rio de Janeiro no qual vimos como que uma entidade cantando
- Moacyr Luz - num bloco de frente para o Teatro Rival. A letra referência
se chama Só dói quando rio de Aldir Blanc sobre melodia de Luz. Quadro jaz imponente
ainda hoje na parede de meu apartamento em Aracaju.




Melhor parar enquanto é tempo. Tapar os ouvidos, fechar os olhos, enfim, tomar alguma atitude para não prosseguir. Pois o que aqui exponho é profundamente pessoal. Não que o antes e o que virá não serão. Tudo o é. Contudo, se você não tiver hoje muita paciência para divagações, pieguices e utopias românticas. Melhor parar enquanto é tempo. Procurar outra mesa. Tomar outro trago...
Mas, frente aos últimos acontecimentos, o mundo (re)aprendendo a conjugar o verbo Être – se bem colocado ou não, outra história, mas que me fez, nostálgico relembrar meu le nouveau Bescherelle, fez – ou o brasileiro que sofreu a pena capital na Indonésia por tráfico de drogas e tudo o que isso tem suscitado em debates sobre Civilização versus Barbárie, Ocidente versus Oriente, conservadores e liberais, modernos e pós-modernos saindo das tocas e tudo o mais que outros, mais bem preparados que eu, estão e estarão comentando neste exato momento me fez pensar em duas pessoas: Caetano e Yuri.
Ouvi alguém dizer, não sei se em sonho ou mesa de bar, que todos deveríamos ser um pouco mais Caetano. Apesar do mesmo ter dito em música que “Chico Buarque de Hollanda nos resgate”. Djavan afirmou que o que vale é “Caetanear o que há de bom”. Adriana Calcanhotto convocou-nos “vamos comer Caetano, vamos devorá-lo”.
O bom do Caetano é que o Caetano é o Caetano e sabe que é o Caetano. Me parece, inclusive, que já sabia há muito tempo. O que me leva, então, a afirmar de forma categórica que, sim, nos falta ser um pouco Caetano Veloso no sentido de sermos nós mesmos e não termos medo de sermos nós.
Ser a si mesmo é complicado, mas mais complexo, e sofrível. Conhecer-se a si mesmo é um processo lento e abandonado diariamente por cada um de nós. Aliás, um tanto triste, acredito até que há pessoas que morrem sem no fundo terem se conhecido a si mesmo, no sentido mais profundo do que essa frase possa tentar expressar.
Há, entretanto, nisso tudo, nessa longa introdução, por si só uma falha que não ignoro: Eu não conheço o Caetano como o Caetano se autoconhece ou mesmo dá a entender que tal fato tão bonito aconteça e como aconteça. Eu jamais conhecerei o Caetano Veloso. Logo, ser um pouco mais Caetano, ao menos para mim, é tão complexo quanto o processo contínuo de tentar todos os dias me conhecer mais do que ao outro. Pois, na minha cabeça, me conhecer de forma profunda me permite conhecer a fundo os outros a ponto de compreender seus medos, complexos, bondades e maldades, vaidades e orgulhos. Talvez, então, eu até conheça o Caetano.
Por isso mesmo, eu digo aqui de alto e bom som que, apesar de não conhecer, quase conhecendo, eu não queria ser como o Caetano ou mesmo o Caetano. Mas, digo aqui em alto e bom som. De alto e bom som que eu queria ser o Yuri, mesmo, com o mesmo pressuposto não conhecendo o Yuri como talvez o Yuri se dê a conhecer. E confesso, tenho sonhos em que sou o Yuri. E antes que você se perca: Yuri é o que há. Não! Yuri é um artista da fome. Do mundo. Das marés. Do afoxé. Do Axé. O Yuri poderia ser até uma nova religião: Os adoradores da lona. Os devotos de São Palhaço. O Yuri é um tipo Melamed. Não que o Michel seja melhor que o Yuri. Nada aqui é ponderável. As coisas são líquidas e alguém poderia me ajudar me dizendo que tipo de líquido na Química não congela. Pois o Yuri não congela.
Então, como eu estava dizendo, o Yuri é um tipo meu de Melamed, pois faz teatro, fotografia, vídeo, performances, música, poesia, pixe e grafite e pintura e um monte de coisa mais que não saberia escrever, pois meu inglês parou quando eu tinha treze anos e de lá para cá me viro com o que dá. O Yuri que me perdoe e você aí também. Mas, deixa eu contar em duas versões, em dois ou três atos, porque eu queria ser o Yuri. Mesmo sem saber quem o Yuri é. Mas, como caminho todo dia com o simples – mas complexo – objetivo de me conhecer, talvez, quem sabe, eu venha um dia conhecer o Yuri como, quiçá, o ele mesmo possa saber quem é e onde está.

Ato 1: O sonhando ser o Yuri com o Yuri

Suado na cama, com o sono me doendo a alma mais que o corpo, vendo meu próprio corpo deitado lá embaixo, eu no alto, como que possuído por mim. Sonho este recorrente e que deve ser uma das memórias mais passadas de sonhos meus, sonhos, não pesadelos. Pesadelos deixei de ter quando minha mãe aconselhada por uma amiga de trabalho do meu pai, me levou ao Terreiro de frente de casa e a mãe de santo baforou uma fumaça de charuto amarga e me deu de beber Garrafada. Nunca mais tive pesadelos. Isto é sonho. E mesmo que eu me ajoelhasse sobre mim e rezasse por mim para mim, eu continuaria fora do meu corpo e nessa jornada, tentando conduzir meu próprio destino de imagens – eu sobre mim mesmo na cama – vi o Yuri como uma entidade passando numa praia com ondas numa bicicleta ornamentada de invisível. O sonho parou.

Ato 2: Retalhando o Yuri

Quando virou-me as costas dei-lhe uma porrada na nuca. Arrastei seu corpo até uma praia deserta de nome deserto, tentei por todos os buracos possíveis entrar em seu corpo magro, mesmo assim, meio capenga e cansado – por ter arrastado seu corpo mole pela areia – não consegui ser o Yuri, no máximo fiquei sujo das fezes, sangue e músculos do Yuri. Acordei. Vi meu gato olhando-me com olhos grandes na madrugada, parecia saber o que eu havia pensado no sonho. Me achou patético. Os gatos nos acham gatos grandes patéticos.
No meio de um bloco quente, na Sacadura Cabral, falei-lhe ao ouvido, algo muito baixo e ele: ôxe, massa! Assim, empreendi uma jornada um tanto louca, porém violenta, de com um pequeno bisturi, que eu carregava no bolso enrolado em silver tape  e roubado de minha mãe, realizar um corte preciso atrás de sua orelha e esgueirar-me apertado por sua cabeça, mas lá só encontrei miolos e sangue... Ainda assim eu não era o Yuri.
Não satisfeito, num outro mundo, não sei, coisa assim, arranquei toda a pele do Yuri e vesti-me de Yuri e Yuri não fui. Sou no máximo um malfadado gordinho com uma pele de Yuri apertada sobre meu corpo. Acordei e comentei comigo no espelho que deveria procurar um compêndio de Medicina. Acordei e fui trabalhar.

Ato 3: L’art de conjuguer. Dictionnaire des huit mille verbes usuels. Je suis Yuri? Tu es Yuri? Il est Yuri? Je serais Yuri? J’aurais été Yuri? Que j’eusse été Yuri!

Não é inveja branca, preta, amarela, tampouco, azul, em querer ser o Yuri. Mas, é uma contestação, melhor um com texto ação (contextuação) ser um pouco Yuri.
Pois quando acordo puto, eu sei que o Yuri fica puto também quando acorda de um sono mal dormido, como eu e você ficamos putos com o que nos deixa puto. E não pense você que o Yuri é bobo, pois não é. O Yuri não fica quieto diante da maldade humana. O Yuri também não presta como toda maldade humana. Mas, um pouco mais de Yuri em mim amenizaria minha preocupação em querer ser o Yuri.
Eu fico pensando nos mares que eu não nadei e será que o Yuri nadaria? E as mulheres que eu amei, o Yuri amaria?
Hoje acordei um pouco melhor e escrevi para o Yuri. Pois eu queria até ter a coragem do Yuri para mostrar minha bunda cabeluda por aí, no meio das árvores com a cabeça raspada. Queria ter a coragem do Yuri de mostrar meu pau murcho-balangandã de um lado para o outro como penduricário. Cuspir gosma verde em um vídeo de música punk-tupiniquim. Mas não! Eu não tenho coragem e talvez essa ausência de coragem nem me permita falar em alto e bom som: Que bom se todos nós fôssemos um pouco Yuri e consequentemente um pouco putos e putas, travecos das esquinas da Rua da Frente. Loucos varridos dos escurinhos da beira de algum cais sem mar. Que rodássemos pelas praças, alegrássemos as criancinhas e os loucos que são mais sãos do que nós pobres maltrapilhos.
Eu queria ser o Yuri, pois sendo o Yuri até minhas roupas seriam mais legais. Eu não gastaria metros e metros e metros de notas de dinheiro para me vestir com panos e o Yuri se veste em panos que são tão mais legais. Eu nem queria me casar de véu e grinalda, nem aliança usaria, pois seria meu coração o pacto da amor com uma rosa.
Eu queria ser o Yuri para trabalhar mais com o que gosto e sair desenhando sereias, corações, colorindo muros, dessuavizando esperanças, colocando mais erres no amor e porque não também na dor. Eu queria ser o Yuri para ser uma síntese de Caetano, de Melamed, de Bispo do Rosário, de Gentileza, de Mário Jorge. De chorar vendo “Três irmãos de sangue” e achar o Moreno lindo. Eu queria ser o Yuri para ser o irmão do Aquino. Para ser o filho dos seus pais também ainda sendo o filho dos meus também.
Eu queria, sendo ele, dar mais valor ao que não há valor para nada e o nada é invisível para o mundo e esse invisível que é o mais importante. Eu queria ser o Yuri para me envolver com os Mistérios e me sentir contemplado com meu rosto pintado e me vestir com paetês. Eu poderia até jogar capoeira e ser para sempre um menino travesso . Mas até meus braços quebraram por ser eu um menino travesso e cada dia sou mais corcunda e sem elasticidade. Eu queria ser o Yuri para ter em mim apenas a responsabilidade de ser, simplesmente, feliz mesmo quando eu estou meio triste com tanta sujeira. Eu queria ameaçar fugir com um circo. Gostar mais de palo santo e não precisar de drogas para ficar doidão.
Mas, eu me conheço e tudo passou. Pois no fundo, eu queria ser o Yuri só por querer ser. Pois querendo ser continuo no meu processo de envelhecer e caminhar na busca por todos os dias me conhecer e, quem sabe assim, um dia não querer ser ninguém além de mim.
E eu não serei o Yuri mais. Mas do Yuri tenho um quadro que foi feito para mim por ele o quadro. E tenho uma gravura que ele fez e imprimiu de um gato. Pois, será, talvez, não sei, a arte é o pedaço do artista.
Mas você pode yuriar também: Paranois3. Por que não?

Axé.


segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Projeto narrativo, arquitetura literária: O Irmão Alemão, de Chico Buarque

Buarque, Chico. O Irmão Alemão. 1ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

Há alguns dias namorava eu numa dessas livrarias que não são aconchegantes como as livrarias da nossa infância o novo romance do Francisco Buarque de Hollanda, que conheci, coincidentemente, numa aula de Literatura na Sétima Série do Primeiro Grau, quando minha professora Rita de Cássia mandou-nos analisar a letra de sua canção A Banda.
Anos antes, eu ouvia vovô resmungar quando algum tio meu ou tia cantarolava joga pedra na Geni, joga bosta na Geni, ela é boa de apanhar, ela é boa de cuspir, ela dá pra qualquer um, maldita Geni.
As coincidências da vida me perseguem, acho que só eu não sou coincidência, pois consta na história familiar que meu pai, imigrante do interior do Paraná e depois dos confins de Cordeiro, cidadezinha também do interior, só que do Rio de Janeiro, e minha mãe suburbana de Marechal Hermes, de nascença, mas criada em tudo quanto é canto da Baixada Fluminense, de Cabuçu, até enfim instalada no Morro da Chalet, em Mesquita, escolheram após se casarem, com festa paga com dinheiro que meu pai ganhou na Loteria Federal, terem um bebê. Também consta que mamãe se arrependeu um pouco do menino com cabeleira e olhos inicialmente claros como de meu pai, posto que moravam no mais alto do morro, num sítio com uma casa de estuque e com histórias de lagartos caindo sobre o berço do moleque ou ele engatinhando caindo em fontes de água cristalina que brotavam nos vastos territórios que com muito custo meu tio mais velho comprou cavando buracos na Avenida Brasil, em Maguinhos, e meu pai costurando bolsas de couro em Madureira.
Talvez, por isso mesmo, por tal arrependimento logo desconjurado por minha progenitora, meu pai de então faxineiro das Papelarias América, tornou-se sub e depois gerente de várias redes e minha mãe voltou a estudar tornando-se enfermeira.
A história é comum para muitos moleques de boa vida como eu: descemos do sítio para uma grande casa ainda no morro e nos tornamos, não sei, um pouco mais abastados do que éramos, mas com o cultivo muito forte da memória de um passado não muito distante que, ainda hoje, papai não deixa morrer. A história é comum para muitos rapazes que hoje vivem aos trancos e barrancos como eu, de história em história, crônica em crônica e por aí vai.
Isso daria um romance. E foi justamente o que o Chico Buarque alçou desta vez, talvez, já seguindo uma certa linha narrativa que vinha desde Leite Derramado. A história do “irmão alemão” não é de toda desconhecida de historiadores e mesmo aficionados pelo compositor/escritor ou seu pai sociólogo/historiador/jornalista/crítico literário, Sérgio Buarque de Holanda, aquele do lido e relido nas graduações Raízes do Brasil que, certa vez, na universidade que hoje leciono uma cadeira de História Medieval, encontramos na seção de Biologia.
Meu namoro com o livro de capa vermelha se concretizou por autorização de minha companheira, uma relação aberta com os livros como a nossa, permitiria tal suplantação de minhas mãos tateando as páginas de folhas espessas da edição bem cuidada da Companhia das Letras, aliás, o próprio Chico com sua poética brilhante não deixa de fazer uma belíssima metáfora em sua narrativa quando associa sua relação quase sexual com os tomos. Na verdade, uma sensualidade belíssima:
Há algo de erótico em separar dois livros apertados, com o anular e o indicador, para forçar a entrada de O Ramo de Ouro na fresta que lhe cabe (p. 10).
Ou mesmo no trecho: Até então, para mim, as paredes eram feitas de livros, sem o seu suporte desabariam casas como a minha, que até no banheiro e na cozinha tinha estantes do teto ao chão (p.16). Passagem que ela me alertou quando pegou os dois primeiros capítulos para ler. Algo que só uma arquiteta poderia perceber.
Curioso que isto me remeteu a um ensaio, que não lembro o nome, publicado em Chico Buarque do Brasil: Textos sobre as canções, o teatro e a ficção de um artista brasileiro, organizado por Rinaldo de Fernandes e lançado em 2004 pela Garamond em parceria com a Biblioteca Nacional. Recordo de comprar o livro com suados niqueis de aulas que dava numa escola de bairro. O tal ensaio que por tempo e por consideração a você que ouve minha voz rouca e sem graça não procurarei, ressaltava, creio eu, remetendo a alguma declaração do Chico em jornal, biografia redigida pela Regina Zappa, enfim, sabe deus onde, que a lembrança mais forte que tinha de seu pai era o barulho de sua máquina de escrever. Relembro: Chico e alguns outros filhos comentam também sobre isso no ótimo documentário Raízes do Brasil, dirigido pelo Nelson Pereira dos Santos.
Eu listaria cada página, frase, cena do livro, para que você, ao sorver o copo de vinho, cerveja ou mesmo o gás do refrigerante, se instigasse a tomar para si tal história. Mas, não o farei. Prefiro tentar te conquistar com os meandros de minha própria ficção.
Vencido o tempo que me faltava, em meio à busca do documentário Coração Vagabundo, sobre o Caetano, e após encomendar Tropicália, também um filme, para quem sabe quando eu possa ver, ela colocou nas minhas mãos o que eu já namorava desde a virada do ano, mesmo antes de nos embrenharmos todos nós pela Bahia de todos os Orixás e lá descobrir o quanto a vida e os sóis se pondo são rosados e de como é gozada a existência da vida, fosse num bichano desalojado numa estrada, fosse num grande cão desolado e deprimido em seu canil. Ou todos nós tristes e desolados em nossas próprias prisões mentais e medos cordiais. Nada mais sensual que sua companheira se desprendendo do apego e te deixando com as mãos livres para tocar folhas de livros.
Uma vez autorizado, vencido o ciúme que nos move a cada um de nós: mergulhei em cada página e na trama entre o fato histórico e a ficção, irmãos siameses que atraem todos nós fui mergulhando, mais uma vez, no mundo buarqueano.
De toda obra literária do septuagenário Chico Buarque de Hollanda, sempre gostei mais do livro Estorvo, curiosamente, não o primeiro que li. Budapeste, me trouxe assombros literários (o primeiro que desflorei) e Benjamim, li por condição de curioso. Leite Derramado foi um presente de um grande amigo e dei boas risadas deitado na minha cama de solteiro na casa dos meus pais, talvez, o último livro que li na casa paterna, e as peças comprei em sebos pelo prazer de ter e a arrogância de dizer que tenho.
A questão é que ao ficcionar sua própria história, Chico foi um pouco além do modelo já conhecido por nós pela alcunha de Romance Histórico, aquele, inaugurado, acredito eu, pelo Walter Scott, e tantos outros, na necessidade européia de buscar suas raízes num passado medieval tão florido que se tornou tão obsoleto quando o passado sombrio que forjaram renascentistas e iluministas. Veja bem, antes de me agredir com a garrafa: obsoleto, abre aspas. Cativante, diria eu, estudar a História Medieval Européia pelos olhos marejados dos românticos e os ensandecidos dos anticlericais.
Aos desatentos, fica a sacada genial de Fernando de Barros e Silva na orelha direita do livro: “(...) Chico Buarque escreveu provavelmente o romance da sua vida.”.
Deixemos que o tempo nos comprove a segunda parte da mensagem. Pois, Jabutis e honrarias já não dizem, penso eu, muita coisa. Mas, os santos do Olimpo literário brasileiro: Machado de Assis, Guimarães, Graciliano, etc, etc, sabem muito bem o que é a eternidade, muito mais do que suas palavras reimpressas no papel.
No mais, a última citação que fica me reanima que a história é comum para muitos adultos que hoje vivem aos trancos e barrancos como eu, de história em história, crônica em crônica e livro em livro sendo colocado na estante para, certamente, nunca serem lidos por falta de tempo:
E era nos livros que eu me escorava, desde muito pequeno, nos momentos de perigo real ou imaginário, como ainda hoje nas alturas grudo as costas na parede ao sentir vertigem. E quando não havia ninguém por perto, eu passava horas a andar de lado rente às estantes, sentia certo prazer em roçar a espinha de livro em livro (p. 16).

O suicídio... contemporâneo

Sempre pensei muito no suicídio – sim, já li o famoso estudo de Durkheim, aliás, duas vezes: uma obrigado e a última por uma certa curiosidade e prazer. Sempre pensei muito, não por querer dar cabo à minha vida ou ter tentado dar cabo à minha vida e fracassado, quando na verdade, não queria no fundo dar fim aos meus rastros no cotidiano. Sempre pensei por certa curiosidade mórbida, um assombro.
A primeira vez que ouvi falar de suicídio foi o do mal falado Judas, o que traiu Jesus. Recordo, ainda muito menino, passar as férias de inverno na casa dos meus avós em Realengo, uma casa de vila, grande e desorganizada, cheia de tios e tias, meu avó num canto consertando sapatos, aquele cheiro de cola misturado com o cheiro de louro no feijão preto que minha avó gorda, muito obesa de seios fartos e caídos cozinhava nos domingos. Nesses dias de muito frio, de meias e casaco de lã, uma tia me lia a Bíblia ilustrada antes d’eu dormir e lá estava Judas – pobre Judas – ajudando na redenção da humanidade, traindo o Cristo por algumas moedas e, ao que tudo indica, se enforcando depois. Toda essa literatura de morte, redenção, etc, me chamava muita atenção quando ouvia atento cada palavra e questionava cada absurdo daquela narrativa e era calado pela fé cega e irracional que contrariava o próprio Paulo, mesmo que tempos depois, eu começasse a desconfiar que Paulo era meio maluco, pois, cá para nós, só um maluco para fazer o que ele fez. Enfim...
Adolescente, assim como criança, sabe lá os motivos, mamãe me levava para que suas amigas e amigos me conhecessem nos hospitais em que dava com eles plantão – orgulho de mãe, talvez. Conheci uma senhora, não me recordo o nome e que mesmo não me recordando o nome, fio a dizer que foi a primeira pessoa que “conheci” que se suicidou.
A história veio da boca de mamãe: Vestiu seu melhor vestido, redigiu uma carta dando coordenadas sobre como queria ser sepultada. Separou senhas de contas, cartões, promissórias a pagar, tudo. Fez uma medicação, tomou, deitou-se e não se levantou mais. Minha mãe repetia sempre para mim, quase que como um mantra: Aquela não deu trabalho para ninguém. Queria mesmo se matar. Contava parecendo até final de texto da Vida como ela é.
Os anos passam e hão de continuar passando, é verdade. E como ele passou, eu passei junto e ao pé dos Arcos da Lapa, bebendo e bebido, conversando com uma morena amiga minha, de cabelos cacheados e que teimávamos sair juntos lado a lado confessando nossos desamores, ouvi um barulho de saco pesado espatifando no chão. Só tive tempo de olhar e perceber que o saco era humano, perdão, era um cara que havia pulado dos trilhos e cheio de glória manchou de vermelho o asfalto da Mem de Sá. Um burburinho, mas a noite continuou e eu com ela.
Porém, mais impactante, já adulto, já mais velho ou sei lá o que, foi um homem que pulou da janela do Ibis que vejo de frente do meu apartamento velho. Impactante, pois em meio ao silêncio da movimentada avenida que nos separa, posso crer que ele desistiu no meio do caminho e seu grito cortou minha paz noturna, assim como os estilhaços de vidro com ele espatifaram no chão.
Um grito seco. Que foi se esvaindo com a queda. O penar.
Depois disso, dei para ler cartas de suicídio: A do Torquato foi a que mais me traumatizou. Dei para ver documentários, um norte americano, que não me lembro o nome, durante muito tempo me dava pesadelos e suores em noites frias. Até mesmo o Hugo Bidet me apavora o suicídio.


Nada disso me bastou: desativei minha conta no Facebook naquele dia... Ah, se Judas soubesse, jamais teria se enforcado.