segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Projeto narrativo, arquitetura literária: O Irmão Alemão, de Chico Buarque

Buarque, Chico. O Irmão Alemão. 1ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

Há alguns dias namorava eu numa dessas livrarias que não são aconchegantes como as livrarias da nossa infância o novo romance do Francisco Buarque de Hollanda, que conheci, coincidentemente, numa aula de Literatura na Sétima Série do Primeiro Grau, quando minha professora Rita de Cássia mandou-nos analisar a letra de sua canção A Banda.
Anos antes, eu ouvia vovô resmungar quando algum tio meu ou tia cantarolava joga pedra na Geni, joga bosta na Geni, ela é boa de apanhar, ela é boa de cuspir, ela dá pra qualquer um, maldita Geni.
As coincidências da vida me perseguem, acho que só eu não sou coincidência, pois consta na história familiar que meu pai, imigrante do interior do Paraná e depois dos confins de Cordeiro, cidadezinha também do interior, só que do Rio de Janeiro, e minha mãe suburbana de Marechal Hermes, de nascença, mas criada em tudo quanto é canto da Baixada Fluminense, de Cabuçu, até enfim instalada no Morro da Chalet, em Mesquita, escolheram após se casarem, com festa paga com dinheiro que meu pai ganhou na Loteria Federal, terem um bebê. Também consta que mamãe se arrependeu um pouco do menino com cabeleira e olhos inicialmente claros como de meu pai, posto que moravam no mais alto do morro, num sítio com uma casa de estuque e com histórias de lagartos caindo sobre o berço do moleque ou ele engatinhando caindo em fontes de água cristalina que brotavam nos vastos territórios que com muito custo meu tio mais velho comprou cavando buracos na Avenida Brasil, em Maguinhos, e meu pai costurando bolsas de couro em Madureira.
Talvez, por isso mesmo, por tal arrependimento logo desconjurado por minha progenitora, meu pai de então faxineiro das Papelarias América, tornou-se sub e depois gerente de várias redes e minha mãe voltou a estudar tornando-se enfermeira.
A história é comum para muitos moleques de boa vida como eu: descemos do sítio para uma grande casa ainda no morro e nos tornamos, não sei, um pouco mais abastados do que éramos, mas com o cultivo muito forte da memória de um passado não muito distante que, ainda hoje, papai não deixa morrer. A história é comum para muitos rapazes que hoje vivem aos trancos e barrancos como eu, de história em história, crônica em crônica e por aí vai.
Isso daria um romance. E foi justamente o que o Chico Buarque alçou desta vez, talvez, já seguindo uma certa linha narrativa que vinha desde Leite Derramado. A história do “irmão alemão” não é de toda desconhecida de historiadores e mesmo aficionados pelo compositor/escritor ou seu pai sociólogo/historiador/jornalista/crítico literário, Sérgio Buarque de Holanda, aquele do lido e relido nas graduações Raízes do Brasil que, certa vez, na universidade que hoje leciono uma cadeira de História Medieval, encontramos na seção de Biologia.
Meu namoro com o livro de capa vermelha se concretizou por autorização de minha companheira, uma relação aberta com os livros como a nossa, permitiria tal suplantação de minhas mãos tateando as páginas de folhas espessas da edição bem cuidada da Companhia das Letras, aliás, o próprio Chico com sua poética brilhante não deixa de fazer uma belíssima metáfora em sua narrativa quando associa sua relação quase sexual com os tomos. Na verdade, uma sensualidade belíssima:
Há algo de erótico em separar dois livros apertados, com o anular e o indicador, para forçar a entrada de O Ramo de Ouro na fresta que lhe cabe (p. 10).
Ou mesmo no trecho: Até então, para mim, as paredes eram feitas de livros, sem o seu suporte desabariam casas como a minha, que até no banheiro e na cozinha tinha estantes do teto ao chão (p.16). Passagem que ela me alertou quando pegou os dois primeiros capítulos para ler. Algo que só uma arquiteta poderia perceber.
Curioso que isto me remeteu a um ensaio, que não lembro o nome, publicado em Chico Buarque do Brasil: Textos sobre as canções, o teatro e a ficção de um artista brasileiro, organizado por Rinaldo de Fernandes e lançado em 2004 pela Garamond em parceria com a Biblioteca Nacional. Recordo de comprar o livro com suados niqueis de aulas que dava numa escola de bairro. O tal ensaio que por tempo e por consideração a você que ouve minha voz rouca e sem graça não procurarei, ressaltava, creio eu, remetendo a alguma declaração do Chico em jornal, biografia redigida pela Regina Zappa, enfim, sabe deus onde, que a lembrança mais forte que tinha de seu pai era o barulho de sua máquina de escrever. Relembro: Chico e alguns outros filhos comentam também sobre isso no ótimo documentário Raízes do Brasil, dirigido pelo Nelson Pereira dos Santos.
Eu listaria cada página, frase, cena do livro, para que você, ao sorver o copo de vinho, cerveja ou mesmo o gás do refrigerante, se instigasse a tomar para si tal história. Mas, não o farei. Prefiro tentar te conquistar com os meandros de minha própria ficção.
Vencido o tempo que me faltava, em meio à busca do documentário Coração Vagabundo, sobre o Caetano, e após encomendar Tropicália, também um filme, para quem sabe quando eu possa ver, ela colocou nas minhas mãos o que eu já namorava desde a virada do ano, mesmo antes de nos embrenharmos todos nós pela Bahia de todos os Orixás e lá descobrir o quanto a vida e os sóis se pondo são rosados e de como é gozada a existência da vida, fosse num bichano desalojado numa estrada, fosse num grande cão desolado e deprimido em seu canil. Ou todos nós tristes e desolados em nossas próprias prisões mentais e medos cordiais. Nada mais sensual que sua companheira se desprendendo do apego e te deixando com as mãos livres para tocar folhas de livros.
Uma vez autorizado, vencido o ciúme que nos move a cada um de nós: mergulhei em cada página e na trama entre o fato histórico e a ficção, irmãos siameses que atraem todos nós fui mergulhando, mais uma vez, no mundo buarqueano.
De toda obra literária do septuagenário Chico Buarque de Hollanda, sempre gostei mais do livro Estorvo, curiosamente, não o primeiro que li. Budapeste, me trouxe assombros literários (o primeiro que desflorei) e Benjamim, li por condição de curioso. Leite Derramado foi um presente de um grande amigo e dei boas risadas deitado na minha cama de solteiro na casa dos meus pais, talvez, o último livro que li na casa paterna, e as peças comprei em sebos pelo prazer de ter e a arrogância de dizer que tenho.
A questão é que ao ficcionar sua própria história, Chico foi um pouco além do modelo já conhecido por nós pela alcunha de Romance Histórico, aquele, inaugurado, acredito eu, pelo Walter Scott, e tantos outros, na necessidade européia de buscar suas raízes num passado medieval tão florido que se tornou tão obsoleto quando o passado sombrio que forjaram renascentistas e iluministas. Veja bem, antes de me agredir com a garrafa: obsoleto, abre aspas. Cativante, diria eu, estudar a História Medieval Européia pelos olhos marejados dos românticos e os ensandecidos dos anticlericais.
Aos desatentos, fica a sacada genial de Fernando de Barros e Silva na orelha direita do livro: “(...) Chico Buarque escreveu provavelmente o romance da sua vida.”.
Deixemos que o tempo nos comprove a segunda parte da mensagem. Pois, Jabutis e honrarias já não dizem, penso eu, muita coisa. Mas, os santos do Olimpo literário brasileiro: Machado de Assis, Guimarães, Graciliano, etc, etc, sabem muito bem o que é a eternidade, muito mais do que suas palavras reimpressas no papel.
No mais, a última citação que fica me reanima que a história é comum para muitos adultos que hoje vivem aos trancos e barrancos como eu, de história em história, crônica em crônica e livro em livro sendo colocado na estante para, certamente, nunca serem lidos por falta de tempo:
E era nos livros que eu me escorava, desde muito pequeno, nos momentos de perigo real ou imaginário, como ainda hoje nas alturas grudo as costas na parede ao sentir vertigem. E quando não havia ninguém por perto, eu passava horas a andar de lado rente às estantes, sentia certo prazer em roçar a espinha de livro em livro (p. 16).

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