terça-feira, 22 de setembro de 2015

Bandido bom é bandido morto...

Carceragem da Polinter de Nova Iguaçu - Fotografia retirada do blog Memórias do Cárcere, 29 de setembro de 2010


É no mínimo curiosa e temerária a frase bandido bom é bandido morto. Na verdade, numa análise mais profunda, bandido bom é aquele que foi recuperado, logo, pode deixar até mesmo de ser chamado de bandido.
Bandido significa, segundo o Houaiss, 1) individuo que pratica atividades criminosas; malfeitor; bandoleiro, salteador e, por extensão, 2 ) pessoa sem caráter, de maus sentimentos. É uma palavra que tem sua etimologia remontada ao século XIV. Mas, paremos por aqui. O sol já começa a se colocar matreiro no seu descanso e como é terça-feira, nem cabe um convite para um chope. O dólar hoje bateu a casa dos R$ 4,00, mas nada disso é efetivamente importante para nós dois, pois bandido bom é bandido morto.
A frase me assusta mais quando é entoada por pessoas que são perceptivelmente calmas, ditas de “boa família”, possuem empregos, vão e vem de ônibus, carros e até bicicletas. Assusta, pois ela representa um processo que não é de hoje e que está profundamente enraizado no cotidiano e que pode ser dividido em dois pontos fundamentais: A gradual perda de confiança (ou mesmo desconhecimento mais apurado) nas leis e o cansaço que consequentemente gera revolta. Esse misto duplo pode ser agrupado em outros subgrupos extensos e variados, mas que podem se resumir no sentimento um tanto geral de que tudo se resume a impunidade. Logo, a solução seria punir os impunes com as próprias mãos. Mas isso, veja bem, fará de você um criminoso, um malfeitor. Quando não, já por extensão: uma pessoa de maus sentimentos!
O primeiro ponto fundamental que comentei é de ordem, penso eu, educacional e de sentido formal: boas escolas. O acesso às leis, pelo incrível que pareça, não é tão complicado quanto possa parecer para o mais desavisado, desinformado. Mas, ao mesmo tempo, é claro que o que se vê, o que se lê, remete o individuo que as busca a uma certa desvalorização de seus significados, importâncias normativas (não gosto do anarquismo, penso serem as leis, quando bem feitas e cumpridas fundamentais para a organização em sociedade, aliás, elas foram/são criadas para isso, se bem criadas ou não, é uma outra prosa), reguladoras e em alguns momentos até opressivas. Nosso currículo educacional é fraco, seja nos segmentos básicos, seja na universidade. Além de engessados nesse último ambiente, ele é extremamente vinculado a tudo aquilo que, como uma grande bagagem, foi trazida pelos alunos: uma concepção de estudo voltada para o quantitativo e não para o qualitativo.  Me deparar, por exemplo, com um aluno de História que ignora a pertinência, quando não  a importância, de se estudar períodos como a Antiguidade (berço da dita democracia, salvo, claro, anacronismos) e a Idade Média (onde testemunha-se um Cristianismo que mais e mais se normatiza em concílios e cânones que ainda hoje embargam justos debates nas casas legislativas como o aborto ou mesmo as pesquisas com célula tronco) me deixa assustado. É lógico que, não paradoxalmente, a culpa nunca esteve nos ensinos básicos, afinal quem forma aqueles que estarão atuando nos Ensinos Fundamental e Médio?
O mesmo é passível de se afirmar a respeito do aprendizado dos nossos Direitos e Deveres. Pois é, acredito que nossos direitos estão intimamente vinculados aos deveres que possuímos. Afinal para tudo ou quase tudo há uma contrapartida. Ao que parece, a coisa toda foi engessada de tal maneira que Direitos e Deveres tornaram-se enunciados antagônicos e extremamente subjetivos, quando não individualistas. E constantemente quando se resolve enxergar as leis ou recorrer a elas procura-se sempre atentar apenas para um lado da moeda, a ponto de se ignorar que uma Justiça bem feita é aquela que não ignora as duas mãos da rua.
O segundo ponto, esse o que mais me chama atenção, pois possui uma camada de gordura difícil de analisar e chegar a algum lugar verdadeiramente, gera aquilo que vem sendo aplaudido já há anos por essas “boas famílias”: a justiça pelas próprias mãos. Uma vez que, para o grosso da sociedade – seja no passado ou na atualidade – a Justiça tornou-se um engodo. Como que num ritornello de semibreves numa mesma linha do pentagrama e sem fine, gera a frase que iniciou nossa conversa: Bandido bom é bandido morto.
Justiça seja feita, ponho minha cara a tapa, evidente que ouvirei em algum momento: Você nunca sofreu algum tipo de violência! ou Quero ver se fosse com um parente seu!. Justo. As duas frases são justas e melhor ouvir isso do que a máxima Está com pena, leva para casa!, essa a mais brutal e desconexa.
Milhares de pais, mães, filhos, perderam e perderão entes queridos de maneira brutal pelas mãos de algum algoz, seja aquele desviante (explicarei adiante o que entendo por desviante) com uma matrícula pública e com o aparato estatal por detrás do fardamento ou por aquele desviante sem uma matrícula pública e com o aparato estatal por detrás e na maioria das vezes de chinelo de dedo e sem camisa. Os dois desviantes são bandidos. Os dois necessitam de algum tipo de processo corretivo, simplesmente por serem desviantes.
O Brasil, dado importante este, tem uma das maiores populações carcerárias do mundo e um dos piores índices de correção de detentos. A Justiça é lenta e falha. Esses dados, soltos assim, podem ser manipulados da maneira que o bebum no botequim preferir, inclusive pelas “boas famílias” e pelo “cidadão de bem” que anda revoltado com o contexto. Ao mesmo tempo, segundo relatório da Anistia Internacional (Brasil) a quantidade de execuções extrajudiciais no Rio de Janeiro é assombrosa, basta conferir. Pelo visto, já temos “justiceiros” suficientes, não?
A polícia mata e mata mesmo e tem ferramentas jurídicas ou pelo menos elementos discursivos: auto de resistência, homicídio decorrente de intervenção militar...
Mas voltemos a boa e velha acusação de hipocrisia: É fácil falar sobre o que você não vive! ou É fácil colocar em prática esse discurso militante sem sentir na pele ter a vida de alguém amado ceifada.  A quantidade de exemplos de frases ultrapassariam minha capacidade de produzir sons. Eu poderia, inclusive, ser personalista, soar aqui violinos e contar minha história de vida, o que passei e deixei de passar, as escolhas que fiz, o que ganhei e perdi... Mas, já disse certa vez, um discurso só é bonito se ele convence.
Mas por se tratar de um Ventríloquo queria invocar outra voz.
Em 2004, eu estava caminhando pelo Centro do Rio de Janeiro – não, não fui assaltado – e fui abordado por um vendedor de Ocas”, uma revista publicada por uma ONG chamada Organização Civil de Ação Social, clique no nome que você saberá mais sobre. Naquele mês de julho, o número vinte e quatro da revista tinha o Chico Buarque na capa e uma interessante entrevista com o cantor e compositor, que me permito reproduzir uma pergunta, em especial:

Ocas” – De que maneira a situação de violência no Rio de Janeiro te afetou?
Chico – A mim, pessoalmente, muito pouco. Na semana passada, roubaram a bicicleta da minha filha, por exemplo, ali na Lagoa. Todas as minhas meninas já foram assaltadas mais de uma vez, mas eu nunca fui. Nunca andei de relógio, anel, corrente, até para evitar isso, para não ter muito o que levarem. Então, desses pequenos crimes ando mais ou menos a salvo. Mas isso não quer dizer nada. Essa confusão não me afeta fisicamente, mas de resto afeta tudo. É ruim estar nessa loucura. Não vivo com paranóias, não tenho essa preocupação. Já passei por climas parecidos, mas que eram mais fáceis de lidar. Por exemplo, no tempo da repressão, sendo realmente ameaçado de ser morto, sofrer acidentes, eu convivia com isso. Não era paranóia de repente chegar uma caixa na minha casa e eu ter que atirar longe para ver se explodia. Mas o que acontece hoje é que você vive com esse clima, e o que te ameaça não vem do inimigo. Esses caras que estão fazendo isso, eu provavelmente dou razão a eles. Se o cara quiser entrar aqui em casa e levar essa porra toda, me dar porrada, eu vou ficar muito puto, não vou gostar de apanhar, mas no fim das contas vou pensar que se eu estivesse no lugar dele faria a mesma coisa. Às vezes as pessoas jogam pedras do mirante aqui na minha piscina, e eu penso que, se eu estivesse lá em cima, também jogaria, entende? Estou lá, vendo isso tudo aqui embaixo, estou sem um puto, eu não vou virar evangélico, não vou ler a Bíblia, talvez tente trabalhar e não consiga nada e, aí ainda mais, eu vou querer aquela bicicleta daquela garota que está passeando na Lagoa (Ocas”, ano 2, n. 24, julho de 2004, p. 24).

Eu pensei em enfatizar mais alguns trechos do que outros, mas você deve ter ouvido eu firmar mais minha voz neles, se você tiver um ouvido bom, certamente conseguiu. A primeira questão que vale a pena, mas vale a pena mesmo, é a percepção de que o “outro” não é seu inimigo. Sim, podem me linchar. Mas é exatamente isso. O outro não é e nunca foi o meu inimigo. O processo de se colocar no lugar do outro é complexo e confuso. As motivações que constroem os desvios pelos caminhos são justificativas injustificáveis, mas que, sim, se olharmos atentos possuem um fundo, porém escondido abaixo de toda aquela gordura que já comentei (um exemplo, fantástico é a história do Sandro Dias).
Alguém já disse certa vez, na verdade, quem disse foi o Marcelo Yuka, que a fome é como um esperma por entre as pernas da violência, de fato, ele tinha razão. O processo de exclusão social no nosso país é como uma bola de lama e essa bola por onde passa vai arrastando tudo. Não muito curiosamente, e não fique pasmo com isso, ela não desce dos morros para o asfalto. Ela sobe do asfalto para o morro. É lógico que mesmo sem o mal da exclusão que aloca os menos favorecidos na margem da sociedade de consumo, a Justiça, as leis e todos nós sempre nos depararíamos com indivíduos desviantes, não no sentido de ignorar a individualidade de cada ser e considerar que fulano ou sicrano estão fora dos padrões aceitáveis. Ora, a lei é mutável e deve atender as necessidade – mínimas – de convivência pacífica entre a pluralidade de comportamentos possibilitando a mínima organização na convivência entre os povos. Me refiro ao um problema ético, grave, que quem sabe um dia tenho paciência para abordar. Porém, lembre-se sempre que um bandido é uma pessoa de maus sentimentos.
Finalmente, mas em Fade out, cabe um alerta. Um “justiceiro” nada mais é do que mais um desviante nessa rua longa que é a convivência humana. Nada mais é do que um agente travestido da própria violência que julga combater. E ele tem um olhar que mira um ponto sempre comum: o negro, pobre e favelado. O “justiceiro” não visa justiça, visa uma falsa redenção por meio da morte do outro que por si só – ele não percebe – é a sua própria morte, uma vez que é incapaz de se ver no outro. Eu quero que minha voz continue ecoando, eu quero que a minha revolta contra a violência e a injustiça também, mas jamais serei representado por esse tipo de gente, jamais endossarei o discurso da barbárie, tampouco, da anarquia. Como disse o grande Luiz Gonzaga do Nascimento Junior, o Gonzaguinha, num show em Exu, Pernambuco, em 1989: É somente através do trabalho da comunidade que nós vamos conseguir realizar alguma coisa, somente o trabalho conjunto e o respeito ao trabalho que vai nos levar aquilo que nos queremos. Uma melhor qualidade de vida. E nos queremos o melhor. É ou não é?
Hoje o “moleque” Gonzaguinha completaria 70 anos de idade, eu queria ter conversado sobre isso, queria ter expressado a importância que suas músicas tiveram para a minha formação como ser humano, mas prefiro encerrar em Fade out...

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

A falsa ideia de praia como espaço democrático e igualitário: Apartheid e eugenia social no Rio de Janeiro

Praia de Ipanema - em algum dia quente de verão


Reuniões oficiais escurecendo outras salas
Onde a tortura faz filho
Na pele de um jovem afro-brasileiro
Na pele de um jovem fodido e sem dinheiro
Catequeses do Medo – O Rappa (1994)



As praias são o espaço mais democrático que existe (no Rio de Janeiro). Esta assertiva, em algum momento, esteve ou foi ouvida saindo da boca de algum carioca. E nas últimas semanas, quase há um mês, certamente, esteve mais em voga no estado do Rio de Janeiro. Aliás, se retirarmos o parêntesis da frase, ela pode ter sido ouvida pronunciada por lábios de sotaques diversos em qualquer cidade litorânea do espaçoso, porém espremido, Brasil. Divagarei sobre o velho Estado da Guanabara, pois há muito a dizer, mas seja puxando o x e o s, seja dando bastante tônica ao t e ao d, não importa muito: AS PRAIAS, AQUELA FAIXA DE AREIA COM INFINITO MAR, NUNCA FORAM DEMOCRÁTICAS!
Antes do funk carioca ter sido descoberto pela classe média dos prédios com porteiros, antes mesmo de ter sido descoberto como manifestação legítima de cultura por sociólogos e antropólogos, ele já denunciava o apartheid vivido pelos excluídos e marginalizados de morros e subúrbios de subúrbios do Rio de Janeiro. Aproximadamente, em 1991, quando a fusão do Miami Bass com tambores tipicamente afrobrasileiros tomava de assalto as rádios numa interessante batalha sonora, um disco conduzido pelo Dj Malboro continha uma inteligente, humorística em sua tragédia de típica crônica e certeira música.
Me refiro ao Melô do Farofeiro, faixa dois do Lp Funk Brasil 3. Observe que naquele tempo ainda se utilizava o termo “Melô”, de melodia, antes do tema que seria desenvolvido na canção. Ao mesmo tempo havia o “rap” disso e daquilo outro. De pouco a pouco a coisa mudou. Mas, prossigo.

Na letra, que reproduzo, é possível ler:

Quando vou à praia eu madrugo na estação
Prá esperar o trem que anda sempre lotadão
Embarco na marra, a viagem é uma barra
Por isso na praia sempre faço a maior farra
Chamam “o farofeiro”
Isso não tem nada a ver
Se chamar de novo, já sei o que vou dizer
Eu moro longe prá lá de Nova Iguaçu
Se você não gostou
Sai da Zona Sul
No bairro que moro o calor é muito alto
Sempre tem alguém fritando ovo no asfalto
Falta água, não tem sombra o jeito é ir pro mar
Mas é só pisar na praia e alguém vem me zuar
Chamam “o farofeiro”
Isso não tem nada a ver
Se chamar de novo, já sei o que vou dizer
Eu moro longe prá lá de Nova Iguaçu
Se você não gostou
Sai da Zona Sul
Quando tô na praia deito e rolo na areia
Não tô nem aí se me olham de cara feia
Levo rádio, levo bola, frango assado prá comer
Levo farofinha que mamãe sabe fazer
Chamam “o farofeiro”
Isso não tem nada a ver
Se chamar de novo, já sei o que vou dizer
Eu moro longe prá lá de Nova Iguaçu
Se você não gostou
Sai da Zona Sul
Antes de ir embora eu dou sempre um rolé
Piso na toalha, jogo areia na mulher
Vou do Leme ao Pontal, prá ver fio dental
Depois pego o buzú e dou calote na Central
Chamam “o farofeiro”
Isso não tem nada a ver
Se chamar de novo, já sei o que vou dizer
Eu moro longe prá lá de Nova Iguaçu
Se você não gostou
Sai da Zona Sul

Em finais de agosto deste ano de 2015, a Polícia Militar do Rio de Janeiro apreendeu, com sua típica truculência, um expressivo número de jovens e adolescentes (apenas um branco) que estavam num ônibus a caminho das democráticas praias da Zona Sul carioca (ver matéria vinculada ao Jornal Extra).
Ora, como a letra demonstra em seu humor crítico a “eugenia social” ainda o é como o foi. Exagerado eu? Que sejamos exagerados quando a crítica recaia sobre os excluídos, amigos! Porém, evitarei ser personalista recordando meus tempos infantis saindo de Mesquita (antigo Primeiro Distrito de Nova Iguaçu) com meus pais, com frango e farofa no isopor. Isso fica para um momento mais alcoolizado de minha parte. Mas, não posso deixar de relembrar também da boa mortadela com pedaços de pimenta e pão francês que com a boca salgada de água do mar parecia ter um sabor único quando eu me sentava em alguma sombra de árvore na Praia do Flamengo para comer ou da minha cara cheia de farelo de Biscoito Globo sujando o banco do ônibus que nos levava da praia até a Central do Brasil para pegar o trem. Deixemos o personalismo de lado nessa conversa.
Todo o exagero violento da PM carioca foi prontamente denunciado pelas mídias, movimentos sociais, arautos da liberdade em suas poltronas facebookianas, locus da contemporânea revolução. Prontamente, houve um recuo quase imediato das “forças de segurança” e o TJ-RJ, após ação da Defensoria Pública, proibiu futuras apreensões (Ver matéria vinculada ao Brasil Post).
Fim do impasse? A liberdade, típica da democracia, venceu? Eu estava errado, as praias são sim os únicos espaços que ainda podemos bradar com peitos inflados como local da ação prática da democracia, cujo direito de ir e vir se manifesta diariamente? Não.
Nada mudou. O antes ainda o é.
E veja bem, confrade, você aí que ouve ou tenta ouvir as múltiplas vozes desse velho e ultrapassado Ventríloquo... Você aí, ouça bem: as praias nunca foram e não são democráticas.
Esse discurso de democracia praiana, nada mais é do que uma sutil artimanha que colocaram, sabe lá Yemọja quando, em bom Yoruba, colocaram na nossa cabeça. A questão, Rainha do Mar, é que seus filhos Ogum e Oxóssi vão continuar tomando porrada no quengo de PM, com recuo ou não das apreensões.
Mas, todo exagero de violência emanada pelo Estado leva automaticamente ao recuo, como eu já disse, do próprio Estado e esse recuo obrigatório cria estratégias para os dominantes manterem a boa e velha dominação, uma vez que o Estado, atualmente, funciona evidentemente para um pequeno grupo dominante.
Numa “jogada de mestre” a Secretaria Municipal de Transporte do Rio de Janeiro extinguiu nada mais nada menos do que 22 linhas de itinerários que ligavam, alguns deles diretamente, as Zonas Norte e Oeste à Zona Sul, fora alguns tradicionais bairros suburbanos que emanam de forma profunda a alma, a verdadeira, carioca que também foram subliminarmente podados de seu acesso direto ao mar: Ramos (esse com seu piscinão), Olaria, Maré, Jacaré, etc. (Ver matéria vinculada ao Jornal O Dia).
A polêmica mais uma vez está posta. Se haverá recuo? Não sei. A questão é que há tempos o Rio de Janeiro, enquanto Estado e Cidade, sempre foi geograficamente separado e excludente em todos os sentidos, ora por cercas, ora pela constante desigualdade. Não se trata aqui de considerar a não democratização da praia, à despeito do que afirmam muitos, como um grosso modo, de que todo carioca do Baixo Leblon àquele que se senta à noite na COBAL do Humaitá para beber um chope gelado é empinado e excludente em seu discurso para com uma maioria que vive nos subúrbios e na Baixada, conheço muitos que não o são. Os olhares atentos de porteiros migrantes nordestinos e a educação que seus ouvidos pacientes contra o preconceito da aristocracia falida que ainda se esforça para tomar café no Copacabana Palace, possibilitou uma sólida educação formal para seus filhos, hoje professores em diversos segmentos, inclusive, universitários, médicos, advogados ou mesmo outros porteiros de olhos atentos e ainda ouvidos pacientes para todo o preconceito de uma classe média fodida, mas que, se tudo der certo e há de dar, terão seus filhos nas cadeiras ao lado dos filhos dessa classe média fodida em boas escolas públicas. Ou seja, a coisa não deu muito certo para a minoria preconceituosa da Zona Sul e essa Zona Sul atual, à parte das já tradicionais favelas coladas, é mais mista e bela do que eles queriam!
O próprio caro e contraditório conceito de subúrbio, talvez, não sei, poderia ser repensado. As casas da Rocinha com belas vistas para o mar ou as de outras favelas localizadas na Zona Sul sempre foram um “subúrbio” lá do alto, mesmo com toda a violência provocada pela demanda por cocaína produzida pelos bacanas do asfalto. Sobreúrbio, talvez. 
E sempre foram as mãos e braços firmes de gente que viaja de Japeri até o Leblon ou que desce as ladeiras dos morros que mantiveram a força motriz e pulsante da cultura que se produziu e se exportou advinda da Zona Sul: Alguém lavava aos copos sujos de uísque do Vinícius de Moraes, não? Cartola, esquecido, foi redescoberto lavando carros.
As praias estão aí, cheias de coliformes e garrafas PET, talvez, esse o melhor exemplo de democracia entre pobres e ricos nas areias das praias cariocas. Porém, estes últimos, financiadores dessa “eugenia social” jamais devem se esquecer que assim como somos todos pó (de cocaína até a terra com vermes e ossos), também somos todos merda boiando no glorioso mar de Yemọja. Somos todos nossa firme merda no mar.




terça-feira, 15 de setembro de 2015

O Partido do Trabalhadores no poder e a "Síndrome do crítico de Fim de Churrasco"



            Em 1852, ao menos se reza que foi nesse ano, pode-se ler da pena e tinta de Karl Marx: A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa.
            Citação hors concours entre muita gente, ora parafraseada, ora copiada cor por cor, a frase se tornou quase atemporal. Fugindo um pouco da hermenêutica, hoje pela manhã pensei bastante sobre o Pacote de Ajuste Fiscal anunciado ontem, 14 de setembro, pela equipe econômica do governo federal para “corrigir” o orçamento já deficitário de 2016.
            Infelizmente, me obrigo a cair no que podemos denominar como “Síndrome do Crítico de Fim de Churrasco”. Explico: O crítico de fim de churrasco é aquela pessoa que, após comer fatias de picanha, maminha, alcatra, contrafilé, asinhas de frango, linguiças de todos os tipos e gostos, beber toda a cerveja possível... critica o churrasqueiro (para bem ou para mal).
Com a pança cheia, senta-se numa cadeira branca de plástico ou aquela dobrável de ferro amarela ou vermelha de duas marcas populares de cerveja, com o umbigo semiamostra, arrota e diz: faltou um pouco mais de sal na maminha, a picanha estava muito seca... senti falta do cupim!
            O que quero dizer, é que o crítico de fim de churrasco – o churrasco é a melhor metáfora que posso utilizar – é o pior tipo de analista, seja do trânsito ou do FlaXFlu do último domingo. Ele é o pior tipo, pois analisa tudo ao término dos fatos. É covarde. Tem os resultados nas mãos, por isso, é covarde. A síndrome do crítico de fim churrasco é uma mazela no ambiente intelectual contemporâneo da terra brasilis. Mas, ao mesmo tempo, ninguém questionou em nenhum momento o crítico de fim churrasco: Mas por que você não assumiu a churrasqueira? Por que você ao provar a picanha não avisou que estava fora de ponto? Por que você, senhor crítico de churrasco, não tomou a atitude e colocou mais sal grosso na maminha, na alcatra? Por quê? Por quê?
            Não sabemos, só sei que caio agora na síndrome como muitos. Consigo numerar uns poucos que, de maneira coerente, já apontavam para o que aí se testemunha e até tentaram aqui e ali não comer da carne parcelada em duas, três vezes, no cartão de crédito corporativo. Espaços interessantes de interlocução intelectual como MPN ou Para ler sem olhar ditavam uma tentativa bacana e bem sensível de análise do be a ba político brasileiro (e grosso modo, mundial). Isso sendo eu tendencioso, o que não nego, já que tenho tido pouco tempo para leitura e estes são os que acompanho num ritmo mais constante. Certamente, há mais coisa boa por aí, porém, não me iludo: não tanto quanto se merecia a pauta em questão. Algumas atualizações reflexivas de timelines também merecem destaque, diga-se de passagem.
            O fato é, penso eu, e é hipótese, logo refutável ou não, que a própria atitude do governo federal de apresentar semanas atrás um orçamento deficitário para 2016, não sei se o jargão, nunca antes na história do Brasil pode ser utilizado e acho que não, foi uma estratégia política, mais uma vez, tacanha e que sinaliza bem o que as relações de negociação iniciadas pelo Partido dos Trabalhadores há mais de uma década resultaram: Uma eclosão de desconfiguração da ideologia do partido, a fragilidade de um governo coligado com ideologias completamente diferentes das suas e, ao mesmo tempo, que o joio não se separa do trigo. O desfacelamento em tempo real daquilo que chamamos  de ideologia de esquerda pode ter o Partido dos Trabalhadores como um exemplo cabal e mesmo a noção tripartite de sociedade, aquela do Dúmezil, acaba se sacramentando com a atual postura petista: O topo da pirâmide, além de preservado, é mantido pelas forças produtivas da base. Chega a ser engraçado pensar que este mesmo governo, não podemos ignorar e devemos reconhecer, possibilitou uma bela guinada – que agora foi freada – possibilitando o início real da erradicação da miséria em nosso país. Mas, a partir do refreamento, me parece, fará sangrar, junto com a moralista e tradicionalista classe média, esses ex-miseráveis e ex-pobres que, certamente, encontram-se presos ao rotativo do cartão, às prestações da TV de LED... O governo, talvez, sem dó nem piedade, fará sangrar suas bases (reais), que já começam a abrir os olhos para a realidade que a cerca. Mudemos um pouco o prisma, sem perder a fumaça do carvão vegetal que braseia o churrasco.
            Ora, em meio uma, talvez, não sei, precipitada greve dos quadros de servidores do executivo (professores, técnicos administrativos, etc., etc. E explico daqui a pouco o porquê da precipitação – mais uma vez “síndrome do crítico fim de churrasco”?), o governo vomita: Não há dinheiro para o ano que vem. Estamos em déficit. Em tese – bem em tese mesmo – até chego a acreditar que quem decidiu por isso pensou muito conscientemente: isso esvaziará as revindicações dos preguiçosos grevistas – sim, muitos são preguiçosos e militam mais no Facebook do que na rua. Mas, a rua virou o Facebook, paciência. As folhas das amendoeiras que caíram no chão esta semana estão mais mobilizadas e unidas do que meus colegas na universidade em que leciono.


            Deste modo – crítico de fim de churrasco – é fácil até perceber a tal da precipitação. Neste momento, momento ontem, não mais o do aviso do déficit, mas das medidas para “corrigir” o rombo, que as forças sindicais deveriam se reunir e decretar uma greve geral aos moldes belos e históricos, sim, nos moldes daqueles que ajudaram a gestar o Partido dos Trabalhadores, em que era possível testemunhar artistas fazendo show como os do Primeiro de Maio para financiar o corte de salários, etc., etc. Mas, se formos coerentes, não vejo uma real possibilidade. Ok, possibilidade sempre há, mas, me refiro ao fundamental apoio da sociedade.
 O problema é que esse passado “glorioso” tornou-se mitológico e pela lógica de relações, basta um primeiro corte de ponto dos servidores para que todos regressem ao trabalho. Claro, isso não acontecerá. Assim espero. Mas, no fundo a realidade é o horizonte que se desenha com a perda de apoio, cada vez maior, das camadas mais populares frente ao desgastado movimento sindical, ou seja, o grosso da sociedade que se verá, também, atingida pelos cortes, mas que não é tola e sabe que você servidor público federal faz parte de uma parcela substancial que ganha mais do que a maioria dos cidadãos comuns do nosso país. E o problema para nós é mais grave ainda: o serviço público federal no Brasil nunca foi lá uma grande maravilha e configura-se um sonho de comodidade, mais do que para uma minoria, de possibilidade de melhoria da nossa nação!
            Por outro lado, o governo age com malícia, mesmo distante, esse passado das greves que gestaram o Partido dos Trabalhadores ainda está no imaginário dos que hoje estão no poder e eles sabem como os sindicatos agem. Até eu que tenho apenas 32 anos aprendi rapidamente observando mais atentamente o discurso tão belo e profundo de alguns confrades.
Então entramos numa guerra midiática constante, de idas e vindas. Por um lado, os dinossauros sindicais que não tiveram sua fatia no bolo petista (no geral, é isso), de outro, alguns gatos pingados, jovens acríticos, covardes, logo “críticos de fim de churrasco”, que se sentem desconfortáveis em dizer: Olha, a coisa é mais complicada do que o que o seu sindicado informa em sua página no Facebook. Estes tem medo do linchamento público dos “proletários” professores que dirigem belos automóveis e passam férias na Europa. E sejamos francos: esses indivíduos sabem de cor e salteado a cartilha retórica de “como transformar uma opinião contrária à sua de ‘peleguismo’”.
            Esses mesmos encostos sindicais serão os mesmos que, em caso de um distante movimento mais significativo de impeachment irão às ruas defender esse governo de mãos dadas com os mais jovens “colegas” de cafezinho nas sedes sindicais, bom, curiosamente, assim espera o governo.
É claro que tal movimento de impeachment, conduzido pelas elites, que, mais à frente acredito que conseguirei demonstrar que abandonarão tal ideia, configura-se como claro golpe ao que chamamos de democracia. Não tenho dúvidas. Mas, se não me falha a má memória, o mesmo Partido dos Trabalhadores, em posição de oposição bombardeou o governo Tucano do FHC com pedidos idênticos. Se não me falha a má memória, o atual Vice-presidente da República, arquivou os processos quando estava à frente da Câmara. O atual presidente desta mesma Câmara, apenas aguarda os movimentos. Os dados estão lançados (e eles são viciados).
            Dois pontos: O governo está apostando e apostando muito no desconhecido e está levando fé demais que professores universitários, servidores em geral, movimentos sociais e mesmo o grosso da sociedade que ainda tinha numa vaga memória recente os avanços do governo petista, se acomodarão assim, tão facilmente. Simples na complexidade: Evidente, por um lado que há quase 90% de chance do movimento liderado pelas elites abafarem o processo tacanho de pedido de impeachment (afinal, contra a presidenta não há provas e, ao contrário, seu governo de fato tem sido aquele que mais buscou a transparência no quesito de punição ao mal da corrupção), o governo jogou as cartas na mesa e essas cartas são todas à direita, e esse é o grave problema. Como rezaria o figurino apresentou: Suspensão de concursos, aumento salarial dos servidores suspenso, PAC, Minha Casa e Minha Vida com redução, retorno da CPMF, etc. A elite, não foi tachada. As grandes fortunas continuam intactas. Os bancos privados continuarão a lucrar. O fantasma do impeachment me parece adormecer um pouco. Apenas um pouco. O presidente da Câmara, se mantém em silêncio. As elites, talvez, sorriam. Mas, se querem o poder (de fato), não me surpreenderia que isso trouxesse mais força ao discurso esdrúxulo de impeachment contra a presidenta da República. Porém, ninguém quer parar de lucrar, talvez haja mais lucro, depois dessa jogada apresentada no Pacote, manter a Dilma, sofrendo golpes cada vez maiores e aguardarem as eleições futuras. Seria, talvez, a última pá de cal no Partido dos Trabalhadores.
            O problema, para o governo, é que tais medidas atingem justamente suas bases mais populares de apoio e que, sejamos francos, já estavam descontentes. O discurso: Era ruim com o PSDB, melhor ruim com o PT, começa a perder fôlego. Talvez, sendo bem frio, desculpe, sendo bem crítico de fim de churrasco, o fato de uma greve universitária já se arrastando por quase três meses, greve do INSS e Técnicos Administrativos no mesmo pé, se não mais, estarem ainda em curso, seja o trunfo do governo para minar de vez nossas forças. Fato: Pais, alunos – desde que não vinculados e manipulados aos sindicatos – já estão descontentes. Aliás, professores já não estão satisfeitos, aliás, as Pós-Graduações funcionam, grosso modo, a todo vapor. Em suma: a própria sociedade já se desgasta pelo desgaste que a imagem dos servidores pintadas pelo próprio governo sofreu (ás em conduzir num passado glorioso greves e mais greves). Por outro lado, as forças sindicais contra-atacarão, as redes sociais são ótimos mecanismos para tal. Minha timeline está equilibrada: por um lado, dois ou três são mais críticos com isso ou aquilo outro. Mas, de fato, sendo sincero, sofremos todos da velha síndrome de crítico de fim de churrasco!
            Ao mesmo tempo, uma greve geral seriam, nesse momento, a melhor ferramenta de condução política para as bases, mas a precipitação passada nos deixa com a corda no pescoço. Esta frase é típica do crítico de fim de churrasco. Afinal, como poderíamos prever? Correto, não haveria possibilidade, contudo, maior calma na condução sindical, talvez, teria possibilitado à história um aspecto de menos tragédia e farsa.
            Tudo isso me coloca duas questões fundamentais que preciso beber um pouco mais para compreender: Primeiro, é um momento ímpar para uma verdadeira guinada social que, já não me iludo, não virá do Partido dos Trabalhadores. A reforma política, tão sonhada, não acontecerá. Segundo, o movimento sindical precisa ser revisto. As relações de força inseridas dentro dos sindicatos, principalmente, universitários, precisam reler Marx, abandonar o “aparato”, a utopia e pensar de maneira mais prática frente a conjuntura contemporânea. As ideias marxistas são relativamente jovens se o colocarmos diante de outras correntes de pensamento. O grande problema é o canonicismo no qual se transformaram as reflexões advindas de seus escritos. O problema não está na dialética do materialismo histórico de Marx, o problema está no tiozão do churrasco e no jovem critico de fim de festa que, na última década engordou bebendo cerveja e comendo picanha queimada. Se ele não se levantar, o próximo churrasqueiro, filho do tiozão, manterá o mesmo modus operandi que há um bom tempo, para trás e para frente, teremos que testemunhar.