terça-feira, 22 de setembro de 2015

Bandido bom é bandido morto...

Carceragem da Polinter de Nova Iguaçu - Fotografia retirada do blog Memórias do Cárcere, 29 de setembro de 2010


É no mínimo curiosa e temerária a frase bandido bom é bandido morto. Na verdade, numa análise mais profunda, bandido bom é aquele que foi recuperado, logo, pode deixar até mesmo de ser chamado de bandido.
Bandido significa, segundo o Houaiss, 1) individuo que pratica atividades criminosas; malfeitor; bandoleiro, salteador e, por extensão, 2 ) pessoa sem caráter, de maus sentimentos. É uma palavra que tem sua etimologia remontada ao século XIV. Mas, paremos por aqui. O sol já começa a se colocar matreiro no seu descanso e como é terça-feira, nem cabe um convite para um chope. O dólar hoje bateu a casa dos R$ 4,00, mas nada disso é efetivamente importante para nós dois, pois bandido bom é bandido morto.
A frase me assusta mais quando é entoada por pessoas que são perceptivelmente calmas, ditas de “boa família”, possuem empregos, vão e vem de ônibus, carros e até bicicletas. Assusta, pois ela representa um processo que não é de hoje e que está profundamente enraizado no cotidiano e que pode ser dividido em dois pontos fundamentais: A gradual perda de confiança (ou mesmo desconhecimento mais apurado) nas leis e o cansaço que consequentemente gera revolta. Esse misto duplo pode ser agrupado em outros subgrupos extensos e variados, mas que podem se resumir no sentimento um tanto geral de que tudo se resume a impunidade. Logo, a solução seria punir os impunes com as próprias mãos. Mas isso, veja bem, fará de você um criminoso, um malfeitor. Quando não, já por extensão: uma pessoa de maus sentimentos!
O primeiro ponto fundamental que comentei é de ordem, penso eu, educacional e de sentido formal: boas escolas. O acesso às leis, pelo incrível que pareça, não é tão complicado quanto possa parecer para o mais desavisado, desinformado. Mas, ao mesmo tempo, é claro que o que se vê, o que se lê, remete o individuo que as busca a uma certa desvalorização de seus significados, importâncias normativas (não gosto do anarquismo, penso serem as leis, quando bem feitas e cumpridas fundamentais para a organização em sociedade, aliás, elas foram/são criadas para isso, se bem criadas ou não, é uma outra prosa), reguladoras e em alguns momentos até opressivas. Nosso currículo educacional é fraco, seja nos segmentos básicos, seja na universidade. Além de engessados nesse último ambiente, ele é extremamente vinculado a tudo aquilo que, como uma grande bagagem, foi trazida pelos alunos: uma concepção de estudo voltada para o quantitativo e não para o qualitativo.  Me deparar, por exemplo, com um aluno de História que ignora a pertinência, quando não  a importância, de se estudar períodos como a Antiguidade (berço da dita democracia, salvo, claro, anacronismos) e a Idade Média (onde testemunha-se um Cristianismo que mais e mais se normatiza em concílios e cânones que ainda hoje embargam justos debates nas casas legislativas como o aborto ou mesmo as pesquisas com célula tronco) me deixa assustado. É lógico que, não paradoxalmente, a culpa nunca esteve nos ensinos básicos, afinal quem forma aqueles que estarão atuando nos Ensinos Fundamental e Médio?
O mesmo é passível de se afirmar a respeito do aprendizado dos nossos Direitos e Deveres. Pois é, acredito que nossos direitos estão intimamente vinculados aos deveres que possuímos. Afinal para tudo ou quase tudo há uma contrapartida. Ao que parece, a coisa toda foi engessada de tal maneira que Direitos e Deveres tornaram-se enunciados antagônicos e extremamente subjetivos, quando não individualistas. E constantemente quando se resolve enxergar as leis ou recorrer a elas procura-se sempre atentar apenas para um lado da moeda, a ponto de se ignorar que uma Justiça bem feita é aquela que não ignora as duas mãos da rua.
O segundo ponto, esse o que mais me chama atenção, pois possui uma camada de gordura difícil de analisar e chegar a algum lugar verdadeiramente, gera aquilo que vem sendo aplaudido já há anos por essas “boas famílias”: a justiça pelas próprias mãos. Uma vez que, para o grosso da sociedade – seja no passado ou na atualidade – a Justiça tornou-se um engodo. Como que num ritornello de semibreves numa mesma linha do pentagrama e sem fine, gera a frase que iniciou nossa conversa: Bandido bom é bandido morto.
Justiça seja feita, ponho minha cara a tapa, evidente que ouvirei em algum momento: Você nunca sofreu algum tipo de violência! ou Quero ver se fosse com um parente seu!. Justo. As duas frases são justas e melhor ouvir isso do que a máxima Está com pena, leva para casa!, essa a mais brutal e desconexa.
Milhares de pais, mães, filhos, perderam e perderão entes queridos de maneira brutal pelas mãos de algum algoz, seja aquele desviante (explicarei adiante o que entendo por desviante) com uma matrícula pública e com o aparato estatal por detrás do fardamento ou por aquele desviante sem uma matrícula pública e com o aparato estatal por detrás e na maioria das vezes de chinelo de dedo e sem camisa. Os dois desviantes são bandidos. Os dois necessitam de algum tipo de processo corretivo, simplesmente por serem desviantes.
O Brasil, dado importante este, tem uma das maiores populações carcerárias do mundo e um dos piores índices de correção de detentos. A Justiça é lenta e falha. Esses dados, soltos assim, podem ser manipulados da maneira que o bebum no botequim preferir, inclusive pelas “boas famílias” e pelo “cidadão de bem” que anda revoltado com o contexto. Ao mesmo tempo, segundo relatório da Anistia Internacional (Brasil) a quantidade de execuções extrajudiciais no Rio de Janeiro é assombrosa, basta conferir. Pelo visto, já temos “justiceiros” suficientes, não?
A polícia mata e mata mesmo e tem ferramentas jurídicas ou pelo menos elementos discursivos: auto de resistência, homicídio decorrente de intervenção militar...
Mas voltemos a boa e velha acusação de hipocrisia: É fácil falar sobre o que você não vive! ou É fácil colocar em prática esse discurso militante sem sentir na pele ter a vida de alguém amado ceifada.  A quantidade de exemplos de frases ultrapassariam minha capacidade de produzir sons. Eu poderia, inclusive, ser personalista, soar aqui violinos e contar minha história de vida, o que passei e deixei de passar, as escolhas que fiz, o que ganhei e perdi... Mas, já disse certa vez, um discurso só é bonito se ele convence.
Mas por se tratar de um Ventríloquo queria invocar outra voz.
Em 2004, eu estava caminhando pelo Centro do Rio de Janeiro – não, não fui assaltado – e fui abordado por um vendedor de Ocas”, uma revista publicada por uma ONG chamada Organização Civil de Ação Social, clique no nome que você saberá mais sobre. Naquele mês de julho, o número vinte e quatro da revista tinha o Chico Buarque na capa e uma interessante entrevista com o cantor e compositor, que me permito reproduzir uma pergunta, em especial:

Ocas” – De que maneira a situação de violência no Rio de Janeiro te afetou?
Chico – A mim, pessoalmente, muito pouco. Na semana passada, roubaram a bicicleta da minha filha, por exemplo, ali na Lagoa. Todas as minhas meninas já foram assaltadas mais de uma vez, mas eu nunca fui. Nunca andei de relógio, anel, corrente, até para evitar isso, para não ter muito o que levarem. Então, desses pequenos crimes ando mais ou menos a salvo. Mas isso não quer dizer nada. Essa confusão não me afeta fisicamente, mas de resto afeta tudo. É ruim estar nessa loucura. Não vivo com paranóias, não tenho essa preocupação. Já passei por climas parecidos, mas que eram mais fáceis de lidar. Por exemplo, no tempo da repressão, sendo realmente ameaçado de ser morto, sofrer acidentes, eu convivia com isso. Não era paranóia de repente chegar uma caixa na minha casa e eu ter que atirar longe para ver se explodia. Mas o que acontece hoje é que você vive com esse clima, e o que te ameaça não vem do inimigo. Esses caras que estão fazendo isso, eu provavelmente dou razão a eles. Se o cara quiser entrar aqui em casa e levar essa porra toda, me dar porrada, eu vou ficar muito puto, não vou gostar de apanhar, mas no fim das contas vou pensar que se eu estivesse no lugar dele faria a mesma coisa. Às vezes as pessoas jogam pedras do mirante aqui na minha piscina, e eu penso que, se eu estivesse lá em cima, também jogaria, entende? Estou lá, vendo isso tudo aqui embaixo, estou sem um puto, eu não vou virar evangélico, não vou ler a Bíblia, talvez tente trabalhar e não consiga nada e, aí ainda mais, eu vou querer aquela bicicleta daquela garota que está passeando na Lagoa (Ocas”, ano 2, n. 24, julho de 2004, p. 24).

Eu pensei em enfatizar mais alguns trechos do que outros, mas você deve ter ouvido eu firmar mais minha voz neles, se você tiver um ouvido bom, certamente conseguiu. A primeira questão que vale a pena, mas vale a pena mesmo, é a percepção de que o “outro” não é seu inimigo. Sim, podem me linchar. Mas é exatamente isso. O outro não é e nunca foi o meu inimigo. O processo de se colocar no lugar do outro é complexo e confuso. As motivações que constroem os desvios pelos caminhos são justificativas injustificáveis, mas que, sim, se olharmos atentos possuem um fundo, porém escondido abaixo de toda aquela gordura que já comentei (um exemplo, fantástico é a história do Sandro Dias).
Alguém já disse certa vez, na verdade, quem disse foi o Marcelo Yuka, que a fome é como um esperma por entre as pernas da violência, de fato, ele tinha razão. O processo de exclusão social no nosso país é como uma bola de lama e essa bola por onde passa vai arrastando tudo. Não muito curiosamente, e não fique pasmo com isso, ela não desce dos morros para o asfalto. Ela sobe do asfalto para o morro. É lógico que mesmo sem o mal da exclusão que aloca os menos favorecidos na margem da sociedade de consumo, a Justiça, as leis e todos nós sempre nos depararíamos com indivíduos desviantes, não no sentido de ignorar a individualidade de cada ser e considerar que fulano ou sicrano estão fora dos padrões aceitáveis. Ora, a lei é mutável e deve atender as necessidade – mínimas – de convivência pacífica entre a pluralidade de comportamentos possibilitando a mínima organização na convivência entre os povos. Me refiro ao um problema ético, grave, que quem sabe um dia tenho paciência para abordar. Porém, lembre-se sempre que um bandido é uma pessoa de maus sentimentos.
Finalmente, mas em Fade out, cabe um alerta. Um “justiceiro” nada mais é do que mais um desviante nessa rua longa que é a convivência humana. Nada mais é do que um agente travestido da própria violência que julga combater. E ele tem um olhar que mira um ponto sempre comum: o negro, pobre e favelado. O “justiceiro” não visa justiça, visa uma falsa redenção por meio da morte do outro que por si só – ele não percebe – é a sua própria morte, uma vez que é incapaz de se ver no outro. Eu quero que minha voz continue ecoando, eu quero que a minha revolta contra a violência e a injustiça também, mas jamais serei representado por esse tipo de gente, jamais endossarei o discurso da barbárie, tampouco, da anarquia. Como disse o grande Luiz Gonzaga do Nascimento Junior, o Gonzaguinha, num show em Exu, Pernambuco, em 1989: É somente através do trabalho da comunidade que nós vamos conseguir realizar alguma coisa, somente o trabalho conjunto e o respeito ao trabalho que vai nos levar aquilo que nos queremos. Uma melhor qualidade de vida. E nos queremos o melhor. É ou não é?
Hoje o “moleque” Gonzaguinha completaria 70 anos de idade, eu queria ter conversado sobre isso, queria ter expressado a importância que suas músicas tiveram para a minha formação como ser humano, mas prefiro encerrar em Fade out...

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