sábado, 25 de junho de 2016

A loteria na Babilônia ou ensaio sobre um lugar comum

Rafael Braga


Como todos os homens da Babilônia, fui procônsul; como todos, escravo; também conheci a onipotência, o opróbrio, os cárceres. Olhem: falta o indicador de minha mão direita. Olhem: por este rasgão da capa se vê em minha barriga uma tatuagem vermelha: é o segundo símbolo, Beth.
(Jorge Luis Borges, a loteria na babilônia. Ficções (1944), p. 53)


Dentre as mentiras da vida
Duas nos revelam mais:
- É um prazer conhecê-lo
- Era muito bom rapaz
(Aldir Blanc e João Bosco, Nada a desculpar, 1973)


A formação malandro cocô
Se na França, onde os políticos tanto da esquerda quanto da direita, cometem erros primários, e a maioria dos que ocupam altos cargos, inclusive o atual presidente, estudaram na Sciences Po, imaginem no Brasil, em que carreira política se faz, geralmente, por ser ex-jogador de futebol, ex-policial torturador ou não, líder religioso neopentecostal, contraventor, ex-celebridade?
É claro, esse é um exemplo tosco, simplista como o são as frases desconexas de um mau ventríloquo aprendendo a arte. Não precisa jogar a cerveja na minha cara, virar a mesa e me dar nas costas com a cadeira de ferro. Calma, cagalhão e cagalhona! Analogias são perigosas nos últimos tempos, tanto quanto a ironia, eu sei.
O que quero dizer é que a política no Brasil nunca foi algo tão sério, a ponto de ser historicamente institucionalizado como estudo. Aliás, Ciência Política é um campo que tem um pouco mais de 50 anos, ou seja, extremamente jovem. Isso me leva a ousar dizer que, por não ter sido e não ser algo devidamente sério no país que mereça atenção, a política sempre foi feita na base do exibicionismo, do “tipo ideal” midiático – quando ela passou a ter importância fulcral –, quando não, na base da oligarquia hereditária. Esta última, o modo mais corriqueiro de se fazer e manter a política, enquanto poder, nas mãos dos mesmos senhores e senhoras de terras e de gente no Brasil.
No país da onça de cativeiro assassinada – são duas mortes em questão, vale frisar –, se aprende os meandros da Política no ciclo vicioso da histórica maneira de se fazer política no jeitinho.
É como a vida numa cela de presídio, numa Polinter da vida ou num morro qualquer: se você está ali, chegou ali, por roubar um frango, um bombom numa loja de grande porte, mofará e perderá toda a melanina da pele, será esquecido pelo Sistema e quando, enfim, deixar de ser uma ficha numa pilha gigantesca, quando for lembrado, se for, sairá de lá assaltante de banco.
Ou se está ali por um baseado queimado, ou dois, até três, que seja. Por plantar em casa para consumo próprio. Enfim, por ser usuário. Foda-se: saíra de lá traficante e revoltado.
Mas é claro, o menino do morro, não planta e, pasmem, pouco fuma. Ele vende e ele é preto e negro é preso. Presídio, Polinter e Morro: tudo uma coisa só.
Assim é a política brasileira, assim é a prática universitária, é o futebol na rua, o namoro no portão ou a arte na galeria: Jogue o jogo para sobreviver.

A práxis do erro: Jogue o jogo
Jogue o jogo. Frase típica nos salões de sinuca, principalmente, entre os malandros cariocas da Lapa e os paulistas da Boca do Lixo. Jogue o jogo: Joga vida roubada/ Joga vinte e um.../ Sinuca, bilhar,/ Joga pra espetar/ Pra matar/ Pra defesa... (Jogador, de João Bosco e Aldir Blanc. Do disco Tiro de Misericórdia, 1977).
O mais temeroso, e essa é a pedra que quero acertar nas vidraças insensíveis do Shopping Center Building com meu estilingue, é tanto a esquerda, o centro, a direita e os lugar-comum, não se darem conta disso.
A esquerda, a que mais me interessa no momento, por exemplo, se apegou ao discurso de “só caçam o PT” e caem no sumidouro narrativo de ignorar que a evidente corrupção petista é idêntica ao jogo jogado pelo PSDB há anos e ao muro de poder que é o PMDB, para citar aqui apenas os peixes grandes. Por outro lado, a direita, cada vez mais burra e dominada por cagalhões, tem conseguido, aos trancos e barrancos golpistas, manipular a massa como o sempre fez e manter o projeto evidente de só evidenciar os males e falcatruas do Partido dos Trabalhadores e jogar para o tapete que quem aparelhou o sistema foram eles mesmos e, de fato inegável, não o PT.
Daí, a esquerda e a militância petista – há uma grande diferença entre os dois ideologicamente na atualidade e já alguns anos, por sinal – batem de frente dizendo “não!”, contudo, num tipo de combate ainda mais tacanho e ingênuo do que mobilizar massas camponesas no sertão que padecem sem água e pão.
Vejam bem: Primeiramente, o interino ainda está inteiro. O salvador da pátria, a estrela branca e imaculada no centro do vermelho sangue, já assinala para as eleições municipais a mesma vinculação de alianças que lhe custaram mais que um dedo no torno.
Quem vemos no horizonte de esperança? Ciro presidente?  Lomba da massa, lomba da massa que não me deixa sair de casa!


Veja mal: Em nenhum momento do debate, se é que existe algum debate atualmente, a não ser agressões mútuas e infantis, pudemos observar algum tipo de avaliação, um mea culpa sequer, dos erros políticos do governo derrubado. Não, não estou falando da militância. Do eleitorado, de você e de mim. Falo das lideranças. Claro, ingenuidade a minha, afinal, reconhecer os erros, é sair do jogo sacramentado da nossa política, seria abandonar as trincheiras já cheias de ratos e larvas de moscas varejeiras nas nossas feridas putrefatas e com vivo pus. Apodreçamos, mas apodreçamos com honra, mesmo que ela, na verdade, seja pura arrogância hagiográfica construída na Lapa, na Cinelândia ou na Avenida Paulista sobre um carro de som e rouquidão e evidente cansaço.
Vejo o contrário. Observa-se uma militância de esquerda reinventando, tão ingenuamente quanto você ouvir minha voz solicitando autoavaliação das roucas lideranças, pautas de luta contra o governo golpista, ignorando, por exemplo, que os índios já eram mortos sob a bandeira vermelha do PT, tanto quanto são assassinados nesse momento e no governo anterior e no anterior e no anterior e no anterior.
Mariana e Ouro Preto padecem na lama podre e contaminada dessa Política feita, não pelo preparo político, mas pelas mãos do jeitinho brasileiro. Se quer o que se quer: manter a práxis.
Ora, tínhamos a rainha do agronegócio à frente da pasta... da agricultura! E agora assumiu o imperador. Oito e oitenta.

O macho adulto branco sempre no comando e A fila de soldados, quase todos pretos dando porrada na nuca de malandros pretos, de ladrões mulatos e outros quase brancos tratados como pretos: Reconhecer o valor necessário do ato hipócrita
Rafael Braga continua preso e ele, a meu ver, é o maior símbolo dos buracos de avestruzes que somos cada um de nós em nossas “lutas inglórias” de 2013 a 2016, em nossa militância ingênua de joguetes. Cafés com leite, isso é o que nós somos na Política.
Café com leite. Termo, segundo o cronista paulistano João Antônio, que se referia aos garotos que frequentavam os salões de sinuca não ser permitido beber álcool e os mais velhos lhes darem café com leite. Ver a antologia Malagueta, Perus e Bacanaço e o conto homônimo (João Antônio. Contos reunidos. São Paulo: Cosac Naify, 2012. p. 42-181).
Ignoramos os atos assinados durante a última gestão desgovernada pelos desgovernos de favores e alianças: Lei antiterrorismo contra nós terroristas. 
Ignoramos até o mais sensível: os únicos que pagaram pela ingenuidade, foram uma mulher branca, que lutou bravamente contra a Ditadura Civil e Militar, sendo presa e torturada e que foi eleita pelo povo esperançoso e um negro catador de latinhas, lavador de carro nas ruas, representando bem o que é a massa e que somos nós massa esclarecida: cafés com leite.
Os dois são similares. Os dois são epígrafes para a sociedade e para o subtítulo chupado do falo de Caetano. De duas canções de Caetano: Haiti, de 1993 (com uma pequena participação de Gilberto Gil) e O estrangeiro, de 1989.
Dilma Rousseff foi o joguete que marca o machismo político e a dominação masculina nas mãos do mais do mesmo. O moto contínuo. Ela é o exemplo da honestidade que foi derrubada pelos acordos entre leões disfarçados de cordeiro. E está pagando esse preço. Quem era Dilma, se não um interregno do projeto de poder de Lula e o liberalismo disfarçado do PT? Quem é Dilma se não aquela que não compactuou com a práxis do Jogue o Jogo? Não enxerga quem não quer ver. E por ser mulher, por si só, teve e tem de enfrentar o antro sujo de homens sórdidos.
Rafael Braga é o negro, pobre e marginalizado. É, nas poéticas palavras de Francisco Bosco, o malabarista do sinal vermelho. Ele é a evidência de Como quem vê por um vidro/ O que escapa da mão/ Uns exilados de um lado/ Da realidade/ Outros reféns sem resgate/ Da própria tensão (Malabaristas do Sinal Vermelho, de João Bosco e Francisco Bosco. Do disco homônimo de 2003).
Por isso mesmo: Vamos comer Caetano/ Vamos devorá-lo/ Degluti-lo, mastigá-lo/ Vamos lamber a língua (Vamos comer Caetano, de Adriana Calcanhotto. Do disco Maritimo, 1998). Ele é o profeta. O ateu que viu milagres que sabe que, às vezes, é solitário viver.

O tiro de misericórdia ou o réquiem dos enganados
Do canto dos escravos, no passado e no presente, ecoa para um ponto do peito uma canção:
Ê ei
Óia puru céu
Óia puru céu
Puru terra
Diabo te enganou Muriquim
Puru terra
Diabo te enganou João Inácio
Óia pro céu 
Puru terra

(O Canto dos Escravos – Canto IV. Gravadora Eldorado, 1982)

Assim, a vida segue e morre mais um garoto de dez anos como ladrão:


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