quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

O corpo estendido no chão

Acordei suado. Não tanto pelo calor, mas pela lembrança que ativou meu instinto de querer conversar com alguém. Aquela vontade insana de desabafar e falar desenfreadamente como bêbado. Molhar a mesa, deixar derramar o chope, abraçar o garçom. Quase uma epifania de fim de carnaval ou o gol de barriga do Renato Gaúcho no final do Estadual. Salve o futebol.

Não sei ao certo o ano ou a data. Mas, posso dizer com certeza que era sábado, final de inverno. Certeza, sem dó!

Sábado, o pai me levava religiosamente para a Vila Emil para eu jogar futebol no Barraquinho, time de moleques oriundo do Barracão. Camisas listradas, vermelho e branco vertical, shorts e meiões brancos ou vermelhos. Praticamente o uniforme do Bangu F.C. O Barracão era um tradicional time do morro que rivalizava com o Verona, time do meu pai, camisas com listras pretas e amarelas verticais, calção preto e meiões amarelos ou pretos. O couro comia.

Era o cheiro forte de couro que marcava minha bolsa de carregar chuteira, cheiro de sebo de carne de boi e couro. E sei que era final de inverno, pois as manhãs em Mesquita ainda eram um pouco frias e aos poucos o sol ia esquentando, formando nos matos do quintal um suadouro bonito, o orvalho da noite anterior se dissipando, assim também era na grama que coçava as pernas onde a gente jogava e sujava a bunda no chão escorregando ao tentar correr.

Daquele sábado, eu pouco me lembro da partida. Se o Barraquinho ganhou, se o Cizinho, o treinador do time, me deixou jogar os dois tempos. Mas sei que atuei na lateral direita, pois era difícil competir com o Tato (um dia falo sobre ele), se marquei bem, dominei bola, fui um atleta mirim elegante, só o tempo dirá. Acho pouco provável.

Só sei dizer que logo de manhã o que me fez hoje acordar um tanto mais suado que de costume e ofegante, por sinal. Me sentar na beira da cama e me olhar no espelho, vinte anos depois daquele sábado, daquele jogo, daquele final de inverno, foram uns cabelos negros e suavemente cacheados, um short jeans com dois três botões sendo o último da cintura aberto – moda entre algumas meninas dos anos 90 –, um tope escuro e uma leve brisa que subia do seu corpo estendido no chão. Uma faixa de sangue escorria por algum lugar que eu não tive muita coragem de observar. Mas ouço bem a voz firme do meu pai dizendo que tinha pouco tempo que estava morta, pois o sangue ainda exalava calor e a manhãzinha fria que aos poucos ia recebendo o calor do sol criava aquele fenômeno que ele não sabia o nome e eu ainda hoje não sei e se sei esqueci, pois pouco importa para nós.

O corpo estava lá estendido, poucos metros entre a lateral e a linha de fundo das traves do gol. Quase no escanteio. Ficou lá, em escanteio. Meu pai finalizou o tento, quase como um legista da Civil: Deve ter morrido por volta das seis, seis e meia... Eram sete e pouca da manhã.

O dia corria, eu me vesti, calcei os meiões e as chuteiras. Lateral direita. Tenho certeza. Numa disputa de bola com um menino maior e mais forte do que eu – não era difícil existirem meninos maiores e mais fortes que eu – tomei um tronco no ombro a ombro e caí na linha de fundo. Lateral esquerda do meu oponente. Eu canhoto, isso desequilibrava o time adversário sempre, hoje eu entendo o velho Cizinho com o cigarro nos dedos e o copo de cerveja na outra mão. Até meu pai sabia da coisa. Porém, naquele dia quem se desarmou fui eu. Eu no chão, olhos fechados da queda e vinte anos depois, volta e meia quando abro os mesmos olhos de menino revejo aquela garota deitada de barriga para cima, cabeça para o lado olhando para mim já sem vida, já sem sonhos. E era só mais um corpo estendido no chão que só foi retirado pelo rabecão na metade do primeiro tempo.


No intervalo da partida, o Bicho da goiaba, que conhecia todas as informações sobre os mortos em Mesquita e região, contou que ela havia sido morta por ter passado informações para os traficantes da boca de fumo rival da região. O Bicho da goiaba era praticamente o Jornal O Povo ambulante, se se vestisse de rosa e tivesse tatuagens com letras pretas de fato pareceria as páginas com os corpos furados de bala das capas do conhecido jornal. Não havia nome, identidade e jamais haverá: foi apenas mais um corpo estendido no chão, o primeiro que eu vi tão de perto e que carregarei comigo para sempre.

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